(Este texto é parte integrante do TCC apresentado a banca da Faculdade Paschoal Dantas em dezembro de 2017 para graduação em Bacharel em Teologia pelo autor deste blog)
CAPÍTULO TRÊS
1. A TEOLOGIA CATÓLICA E A ESCRAVIDÃO
3.1. Catolicismo brasileiro: religião oficial e formação da teologia.
O catolicismo foi a realidade
religiosa oficial do Brasil desde sua colonização e continuou no Brasil Império
(1822-1889), no primeiro por força da Constituição de 1824 no seu art. 05, a qual afirmava:
“A religião católica
apostólica romana continuará sendo a religião do Império. Todas as outras
religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para
isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo”.
O proselitismo e as construções de
templos não eram permitidos, o que impedia o crescimento do protestantismo.
Depois por tradição ibérica e imposição do clero católico que via no sistema Padroado a saída para a dominação religiosa territorial.
O regime de Padroado[i]
continuou existindo no primeiro reinado, este controlava a administração
e os assuntos eclesiásticos católicos.
Para
Ney Souza (p.129) o padroado teve dois momentos no Brasil: o primeiro que vai
de 1826 até 1840 com o início do segundo reinado. Era uma igreja nacional totalmente
controlada pelo rei e posteriormente pelo Regente Feijó que exercia poder que
permitia controlar os assuntos da igreja: nomear bispos e prover outras funções
eclesiásticas; conceder ou negar beneplácitos régios aos decretos papais antes
de serem divulgados no Brasil. O papa era reconhecido como chefe honorífico,
mas sem uma efetiva participação sobre os assuntos da Igreja Nacional. E, o
segundo período de 1840 até a Proclamação da Republica em 1889. Nesta fase se
verifica grande mudança na relação Igreja e Estado, “principalmente no
pensamento católico do que são as atribuições dos negócios eclesiásticos”.
A primeira fase do Império
(1826-1840) foi fundamental para a formação do pensamento teológico católico brasileiro,
por ser um período de continuação da dominação do poder civil sobre o
eclesiástico (principal característica do padroado) que chega a ser uma dominação e controle de quase
opressão, visto que o Estado retardava os negócios da Igreja e os clérigos não
passavam de funcionários públicos em vez de ministros da igreja Católica.
Segundo Ney Santos (p.130, 131), essa condição influenciava no pensamento
ministerial do clero: “Tal fenômeno não deixaria de influir na mentalidade dos
sacerdotes e em suas atividades pastorais, bloqueando sua capacidade de
iniciativas e sujeitando-os a rotina de trabalhos oficiais e sistematicamente
controlado pelo Estado”. Dessa condição que se mostrou ambígua para a Igreja
vai surgir uma nova teologia que levará a grandes divergências entre o poder
espiritual e o temporal que vai resultar na “Questão Religiosa (1872-1874) e
finalmente a separação entre Estado e Igreja pela Proclamação da Republica em
1889”.
O período em foco estava sob
Regência do Padre Diogo Antônio Feijó (1784-1843)[ii],
quando esteve à frente do país por duas ocasiões; período marcados por inúmeras revoltas e revoluções populares e
pela baixa credibilidade do clero junto ao povo provocado pelo distanciamento
da igreja; devido a escassez de padre, concubinato de
padres e com família e a indolência ministerial, por causa disso se ansiava por
reformas no corpo clerical e dos objetivos missionários da igreja e sua
autonomia como instituição nacional.
Sobre este período, segundo Ney
Santos (p.132), o que é importante para a “teologia no império é a percepção
que estes pensamentos, projetos e práticas estão alicerçados na doutrina
galicanas e febroniana[iii],
preconizando assim uma igreja nacional”. Toda esta ambientação política e
religiosa vai preconizar na mentalidade teológica desfavorável à abolição dos
escravos calcada na sociedade de dominação branca.
A
afirmação de Ângela Rodholfo Paiva ao falr sobre “Catolicismo brasileiro:
harmonia no reforço da desigualdade” escreve:
A esfera religiosa no
Brasil vai adquirindo idiossincrasia que lhe confere identidade própria, sendo
mesmo mais apropriada falar em “catolicismo brasileiro”. De uma certa maneira,
a prática religiosa vai exacerbar as características mais marcantes do
catolicismo trazido de Portugal em virtude dos acontecimentos específicos na
história brasileira (PAIVA, p.44).
Os
agentes externos para a formação do pensamento católico em relação ao negro
estão dialeticamente relacionados a ambição portuguesa para a colonização de
seus territórios, e no período monárquico este pensamento não era diferente. A
necessidade da mão de obra escrava, os interesses dos grandes proprietários de
terra e senhores de escravos em uma nação exclusivamente agrária reforçada pelo
pensamento católico português da desvalorização da raça negra e a busca ambiciosa
do enriquecimento pessoal. A combinação ou a somatória desses fatores vão se tornar
barreiras intransponíveis para a libertação dos negros.
O catolicismo, desde o século XVI, é
a marca da vida social brasileira. Souza afirma que “Não se entendia a
realidade sem uma explícita referência ao transcendente e à Igreja Católica,
esta última vista como representação visível da divindade” (Souza, p. 129). A
vida religiosa estava presente em todas as esferas estruturais da sociedade,
seja nas dimensões públicas e oficiais, nas domésticas e pessoais. Souza
(p.130) afirma que “nesse tipo de cristandade, as esferas cíveis e
eclesiásticas praticamente se identificam, e o cidadão é obrigatoriamente
cristão. Há uma sacralização das estruturas sociais e politicas. Estará neste
ponto a raiz do processo de dessacralização do sagrado”.
Na segunda fase do império de 1840
até a Proclamação da Republica em 1889 se verificou considerável mudança na
relação Igreja e Estado, “principalmente no pensamento católico do que são as
atribuições dos negócios eclesiásticos”.
Para entender o pensamento teológico
católico no Brasil do Segundo Império, é necessário perpassar pelos fatos
políticos e religiosos dominantes no Primeiro Império que teve implicações
próprias de uma Igreja Nacional com a ausência da dominação papal. No Segundo
Império aconteceu uma mudança drástica no governo da Igreja. Começando pelas
ações adotadas pelos papas Gregório XVI (1831-1846) e Pio IX (1846 - 1878) com
objetivo de combater “o pensamento científico, restaurar valores da sociedade
medieval, inclusive princípios filosóficos e teológicos, apregoou a necessidade
de subordinação do homem à ordem sobrenatural”. Combater os pensamentos
revolucionários e modernos e trazer a igreja sob o domínio Ultramontano[iv].
As pregações são voltadas para a humildade e obediência a hierarquia a
autoridade eclesiástica. No Brasil
nesse período do Segundo Império os bispos reformadores foram lentamente
introduzindo as orientações papais de uma igreja segundo o modelo do Concilio
de Trento e preocupada com a evangelização do fieis; para isto, foi opondo as
ações do rei, ao clero liberal que desde o início do império sustentava a ideia
de uma igreja regalista e submissa ao poder imperial; combateram a maçonaria
dentro da igreja, formaram e nomearam padres em diversas dioceses. Para
contrabalançar o rei procurava nomear somente bispos que tinham vínculo,
“tendência conservadora”. Assim, o bispo encontrou espaço para se manifestar em
diversas dioceses do país. Envolveram-se a imprensa e considerável parcela da
população; foi um período de profundas tensões entre o governo e a igreja que
abalaram a monarquia, uma das grandes tensões foi a chamada Questão Religiosa
(1872-1875), cujo epicentro dessa tensão foi a proibição do clero na
participação da maçonaria ou em qualquer cerimônia maçônica. Daí se desenrolou
um conflito envolvendo a maçonaria e dois bispos: o bispo de Olinda, D. Vital,
e do Pará, D. Antônio de Macedo Costa (SANTOS, p.136).
O
jornal de D. Vital, A União, publicou
artigos que “criticavam a liberdade de culto e pensamento, a separação entre
igreja e Estado e colocava a Igreja acima do poder civil, ao insistir que as
leis dos homens não podiam ser distinguidas das leis de Deus”. O fato é que o
‘caldo engrossou’ entre a maçonaria e a Igreja. A tipografia do jornal ‘A União’
invadida e um padre morto a facada. O bispo havia lançado um interdito a duas
capelas de irmandade que se recusava a expulsar os confrades maçons. O rei
interveio, mas suas ordens não foram compridas, pois afirmavam que fora por
ordem do papa. Toda decisão, ordem, etc. do sumo pontífice deveria passar pelo
beneplácito do rei. Foi neste sentido que os adversários aproveitaram para
afirmar que o papa estava intervindo em assunto nacional. O bispo D. Vital foi preso
juntamente com o bispo do Pará D. Antônio Macedo Costa, e ambos, condenados às
penas de quatro anos em trabalhos forçados. Em 1875 a pena foi revogada e os
bispos anistiados chegando ao fim a Questão Religiosa. No entanto, no final a monarquia
saiu enfraquecida e desacreditada. A hierarquia clerical se mostrou
“intransigente a certas medidas de caráter secular e a reinvindicação de
conservar o lugar privilegiado no plano espiritual que sempre detiveram junto
ao poder” (SANTOS, p.137).
As reformas realizadas pelos bispos
nesse período foram estritamente de cunho clerical, seus objetivos era um padre
santo e reto, comprometido com a ordem espiritual e inteiramente voltado para
as coisas do alto. O celibato deveria ser observado como condição necessária
para a ideal missão evangelizadora de uma população de fieis que vivenciava uma
religiosidade classificada como fanática e supersticiosa. Era necessário,
portanto restaurar a religiosidade nos ditames do culto oficial e às normas
romanas. Santos (p.137) salienta que não
é possível generalizar a situação problemática de grande parte do clero, pois
poderia se pensar que somente depois da reforma que o clero entrou na via reta.
Segundo Ney Santos (p. 139), o que se verifica nesse Segundo Império
(1840-1889) é a “participação nula do clero nos movimentos de abolição e no
processo de Proclamação da República liderado pela burguesia liberal. Portanto,
não houve até aqui um projeto social que envolvesse tanto o pobre como escravo
como fim último da missão da Igreja”.
a. A evangelização católica e a doutrina escravista
em perspectiva histórica.
O catolicismo no Brasil do séc. XIX
em suas relações favoráveis à escravidão, não advém da orientação bíblica do
Pentateuco segundo a Leis de Moises ou da posição cristã do Novo Testamento,
mas está relacionada a uma construção histórica envolvendo política, economia e
principalmente teologia católica como já foi descrito aqui. De uma construção
histórica por que o catolicismo desde seus primórdios teceu relações íntimas
com o poder temporal.
Resumindo, o Reino de Portugal surge
politicamente e territorialmente no séc XII e economicamente através do comércio
marítimo na costa da África ainda no séc. XV. Sua relação com o catolicismo se
destaca após a criação da Ordem de Cristo[v]
(remanescentes dos Cavaleiros Templários), com fins religiosos e militares, soldados
e missionários conquistadores a serviço da coroa portuguesa.
As raízes da formação do pensamento
favorável à escravidão, da legitimação à permissão da escravidão africana tem
origem bem antes de 1500 e bem longe do território brasileiro. Começa com as
conquistas portuguesas e principalmente com o infante Dom Henrique, o navegador
(1394-1460) e grão-mestre da Ordem de Cristo, que fez de Portugal uma potência
marítima.
Segundo Eduardo Hoornaert (p.32) o
‘sucesso’ das expedições da Ordem de Cristo “trouxe as portas do reino
preciosas mercadorias nunca dantes vistas: ouro, marfim, tintas, pimenta,
açúcar e finalmente em 1441, escravos africanos”. Em 1443, a ‘expedição de
Lançarote “trouxe para Portugal 245 escravos, onde 46 dos quais foram dados ao
infante que prontamente ofertou à Igreja de Lagos”.
Em nome da coroa de Portugal e da
Igreja, a Ordem de Cristo combateu contra os Sarracenos ao norte da África
estabelecendo domínio territorial para Portugal ao longo da costa africana e
levando o catolicismo aos povos pagãos. A conquista e dominação territorial vai
se confundir com evangelizar e tornou um meio de forma de expansão do
catolicismo. Sob a sombra do brasão da
Cruz da Ordem estampados nas velas e de carona nas caravelas, os missionários católicos romanos encontraram amparo e solução para expandir
seus domínios territoriais, visto que na
Europa estava perdendo terreno para os protestantes e no norte da África e na
Ásia Menor para o Islamismo.
b. Expansão territorial e evangelização do
negro.
Dr. Vasconcelos (p.40) escrevendo
sobre a evangelização católica em território brasileiro faz a seguinte
referencia: “A expansão dos interesses econômicos da coroa portuguesa se
confundia com a expansão do catolicismo. A conversão ao cristianismo se
confundia com submissão à coroa portuguesa: aceitar ao evangelho, anunciado
pelos missionários era ao mesmo tempo aceitar a coroa” (VASCONCELOS, p.40).[vi]
Muitos autores destacam que os
negros capturados eram batizados antes mesmo de embarcarem para o Brasil ou
quando chegavam a portos brasileiros antes de serem vendidos aos engenhos. Dom
João II (1455-1495) ordenou que os negros fossem marcados a ferro-quente como
prova de o imposto já havia sido pago na África e esta marca servia como prova
de certificado de batismo cristão, posteriormente Dom João IV (1604-1656)
substitui a marca por uma argola pendurada no pescoço que tinha o mesmo
objetivo. A alma do negro sem o batismo era vista como habitação de demônios
(VASCONCELOS, p. 41)[vii].
Segundo Viotti da Costa (p.17)
“muitos chegaram a justificar a escravidão, argumentando que graças a ela o
negro era resgatado da ignorância em que vivia e convertido ao cristianismo e
que a conversão libertava os negros do pecado e lhes abria a porta da salvação
eterna”.
Na África e no Brasil o negro era
visto como mercadoria, moeda corrente e objeto de troca, necessário para o trabalho
e continuidade do projeto colonizador português, inclusive das missões jesuítas
que foram se instalando no litoral brasileiro na medida da necessidade
expansionista colonizadora e não por uma demanda missionária. O sistema
colonizador português não supria as necessidades financeiras das missões jesuítas,
e por isso precisavam se manter de modo independente. Viram nas fazendas
produtivas a forma de independência financeira do regime de padroado e para
suprir a demanda de mão de obra nas fazendas necessitavam de escravos. A igreja
que libertava, também escravizava; isso só é possível entender dentro daquele
contexto do sistema colonial. Em via de regra, o discurso era: “Não se encontra
gente de trabalho para se contratar: o único remédio é ter escravos”. Esta foi
a declaração do Padre Serrão. O Pe Manuel da Nobrega de Olinda, em 1551 pediu
escravos ao rei D. João III com a finalidade de manter a missão.
Para a subsistência da missão foi necessário (no
ano de 1568) a congregação provincial de Portugal aprovar a escravização
africana; e em 1576 a proibição da Companhia de Francisco de Borja para a
escravização indígena foi cancelada com a devida ‘participação humanitária’ do
Padre Anchieta conhecida universalmente. Sob os argumentos de não haver mão de obra
livre para manter as missões, mas na realidade a escravidão foi sendo
introduzida e tolerada entre os religiosos. Não passou muito tempo para que o
comércio e o tráfico acontecessem entre os jesuítas e religiosos (HOORNAERT, p.
36-40).
Foi
este contágio com materialismo o lamento de Joaquim Nabuco em seu livro ‘O
abolicionismo’ escrito no final do séc. XIX, como informa Eduardo Hoornaert:
[...] que efeito
prodigioso não faria a palavra do sacerdote que realmente pregasse a moral
social do evangelho! Mas onde já se viu um missionário abolicionista! [...]
ainda não houve no Brasil um bispo que levantassem a voz contra a escravidão,
como os houve para levantar a voz contra a maçonaria, apesar de estar a
escravidão mais condenadas por bulas pontíficiais – e por concílios – do que a
maçonaria (HAUCK, p. 279).
Desde o séc. XVI, o negro começa a fazer parte
do projeto português de exploração e colonização e a ser incorporado ao projeto
das missões religiosas. Naquela época os padres eram isentos das tarifas
alfandegárias cobrados sobre os escravos que adquiriam.
Dessa
forma, o conceito de evangelização aos povos não alcançados não surge de uma
conscientização bíblica apostólica integral, mas surge no contexto
colonizador português de exploração e
dominação geográfica característica daquela época histórica que se apresentava no
mundo europeu, juntamente com o cristianismo daquele momento com todos os seus
vícios dogmáticos e autoritarismo, e principalmente de disputa de poder entre o
catolicismo e outras formas religiosas que despontavam espaço territorial e
poder espiritual sobre o temporal, ou seja: o poder da Igreja sobre as decisões
do Estado.
A relação de missão e colonização ganha instrumentos
legais concedidos ao rei de Portugal como o direito de Padroado Régio a partir
de 1442; um direito de conquista por serviços prestados a Santa Sé.
Portugal tornara “senhor dos mares nunca
dantes navegados, organizador da igreja em termos de conquista e redução,
planificador da união entre missão e colonização”; tudo convalidado e
autorizado pelas bulas papais (HOORNAERT, p. 34-35).
c. Raízes da formação doutrinária
Uma nova ideologia foi se formando a
partir das primeiras conquistas de Portugal em costas africanas, através dos
resultados econômicos obtidos, pela concessão do padroado e pela legitimidade
que as bulas papais proporcionavam. As bulas papais concedidas aos governos ibéricos
davam plenos poderes para conquistar os povos (sarracenos e pagãos),
comercializar, subtrair bens e terras, e até escravizá-los (muito embora, na
época a captura e escravidão dos africanos foram profundamente contestadas na
Europa). Concedia também o direito de comandar e organizar a Igreja na
evangelização dos territórios conquistados. Este modelo de missão e colonização
foi trazido por consequência ao Brasil e perdurou durante todo o período
colonial e deu liga a formação do pensamento doutrinário no período imperial.
Eduardo Hoornaert explica que “O
elemento doutrinário é de suma importância na formação de uma cristandade, pois
ele forma o embasamento da ação missionária e catequética”. E ainda que “dois aspectos tiveram influência
decisiva na maneira de pensar da cristandade: a matança e escravização dos
indígenas brasileiros e a tráfico negreiro com a subsequente escravização dos
africanos no Brasil”.
Diante destas duas problemáticas, ninguém
ficou alheio, pois uns legitimaram a ação portuguesa e daí decorreu um
movimento doutrinário que atravessou toda a História do Brasil. Esta
“legitimação se dará por palavras e discurso e o poderio português sobres os
indígenas e negros; outros ficarão perplexos diante, hesitavam e ficavam
inseguros” (HOORNAERT, p. 320,321).
Vale
destacar que não faltaram nomes que se opuseram ao tráfico e ao sistema
colonial. Somente para citar alguns, como Pe. Manoel da Nobrega, teólogos como Vitoria,
o jesuíta Afonso de Sandoval, Luís de Molina (1536-1600), professor e teólogo
em Évora entre 1568-1583 numa época crucial para a formação da teologia
evangelizadora colonial e Antônio Vieira que atuou na região amazônica.
Para Eduardo Hoornaert na formação
do pensamento doutrinário é preciso levar em conta outro aspecto:
Só se pode estudar a
doutrina da Igreja no Brasil dentro destes movimentos dialéticos que agitou os
maiores espíritos que trabalharam na obra do evangelho aqui e que sofreram profundamente
em sentir que estavam engajados, querendo ou não, nos percursos coloniais
(HOORNAERT, p. 321).
O
que o autor explica é que houve duas doutrinas na história da igreja no Brasil:
uma profética, reveladora da face Deus no outro, seja ele indígena ou negro. Esta,
na prática, conhecida como aldeamentos e proteção aos indígenas. E, dos negros
pela prática de emancipação e alforrias. A outra doutrina justificava a expansão
religiosa através da totalidade do projeto econômico colonizador, pois colonizar
era evangelizar e reduzir a escravidão era catequizar. Esta escondia a face de
Deus e enganadora. Este discurso servia aos colonizadores para se justificarem
e esconderem-se da face de Deus enganando a si mesmo. Mais uma vez os negros escravizados não foram
participantes de um projeto no sentido profético.
No período colonial a evangelização
se voltou principalmente aos indígenas com o trabalho dos jesuítas num sistema
que ficou conhecido como aldeamento. O aldeamento foi utilizado para facilitar
o contato com os indígenas, afastá-los do convívio com os brancos e protegê-los
da violência. Dentro do plano missionário Jesuíta, os indígenas tiveram grande
importância. Infelizmente, o mesmo não ocorreu com relação aos negros escravizados,
apesar deste terem grande importância no projeto colonizador. A evangelização
ficou restrita dentro do quadro familiar patriarcal que escravizava. “Não houve
missionário que compreendesse o valor libertador dos quilombos, por exemplo, [...]”.
Simplesmente o que houve foi uma assistência aos escravos a pedido dos senhores
ou de escravos convertidos ao catolicismo. Assim, “o escravo sempre foi visto
como escravo” (HOORNAERT, p. 59).
Ney Santos escrevendo sobre
Cristandade e teologia no Brasil colonial o pensamento teológico da cristandade
lusitana como relação ao negro escravizado:
O jesuíta Jorge
Benci, numa obra publicada em 1705 afirma que a escravidão e o cativeiro eram
uma consequência do pecado original. As causas últimas da injustiça no mundo
são atribuídas à fase anterior do Paraíso Terrestre. Alguns moralistas
afirmavam que a escravidão não era apenas um castigo do pecado original, mas
era um meio eficiente de conversão à fé cristã (SANTOS, p.05) [viii].
Segundo Ney Santos a ‘teologia da
cristandade’ foi a teologia lusitana católica imposta vigente no período
colonial e imposta nos territórios brasileiro onde os portugueses conseguiram
exercer irrestrita soberania, de modo pleno, estabeleceram instituições e
normas de ocupação sem a oposição de outras sociedades ou ingerência de
concorrentes.
Os portugueses se colocavam como
predestinados por Deus, escolhidos por Deus para serem portadores da salvação,
assim o pregresso marítimo e econômico são vistos como manifestações da presença
de Deus que legitimam não só as conquistas, mas qualificam-nos como designados
por Deus em prol da edificação da cristandade. Assim fora do modelo lusitano
católico não havia salvação e esperança para o homem. Além da concepção da
Teologia do Desterro, que segundo Ney Santos, está representada principalmente
na ‘oração de Salve Rainha’. Onde os “degradados filhos de Eva [...] gemendo e
chorando neste vale de lágrimas [...] e depois deste desterro, mostrai-nos
Jesus”. Ou seja, este mundo era visto como um ‘lugar de lágrimas e desterro e
vale de lágrimas’ que favorecia o sistema colonial de opressor e ninguém
deveria opor-se a isto, apenas aceitar como vontade de Deus.
Segundo Vasconcelos (p. 40), a
evangelização do negro estava inteiramente ligada à Casa Grande e ao Regime
Patriarcal (miniatura do modelo social vigente na Europa) e sua forma de vida
social. A expressão de amor ao próximo e valorização da pessoa ficava, sob a
responsabilidade dos senhores de engenho e dos feitores que escravizava. A
religiosidade se centrava no modelo de catolicismo doméstico de adoração aos
santos e rezas; sem questionamento doutrinário e confronto ao pecado. Era rara
a presença de sacerdotes e párocos que apareciam em ocasiões especiais e
ministravam os sacramentos.
No período imperial a Igreja ainda
se manteve unida ao Trono por força do Padroado Régio e da Constituição de 1824.
E, até houve um esforço de Feijão para formação de uma Igreja Nacional, porém
sem êxito.
A partir do Segundo Império surgiram
cabeças de resistência do prelado católico sobre a interferência do Estado nos
assuntos da Igreja. Em parte, devido a preção do Pontífice de Roma o Papa
Gregório XVI em sua encíclica Merari vos,
datada de 1832 que em suma afirma que “compete ao pontífice romano governar
a Igreja Universal”. O objetivo principal era centrar em Roma todas as decisões
da Igreja Católica (SOARES, p. 21).
Segundo Soares a partir da segunda
metade do séc. XIX, grande parte do episcopado já havia sido influenciado pela mentalidade
ultramontano que ia gerar na década de 70 o conflito que ficou conhecido como
Questão Religiosa, já tratada neste texto. Apesar de todas as divergências, a
Igreja se manteve fiel ao Trono até a Proclamação da República em 15 de
novembro de 1889, acontecimento que pegou todos de surpresa, inclusive a própria
Igreja Católica.
d. A escravidão na Bíblia.
Um estudo exegético se faz
necessário para elucidar qual foi o pensamento bíblico original com relação à
escravidão e os princípios que deveria nortear a teologia cristã com relação à
escravidão. Este estudo bíblico deveria ser realizado na época dos
conquistadores marítimos e praticado principalmente pelos católicos ibéricos.
Todavia, vários fatores históricos, econômicos e religiosos contribuíram para
que isso não ocorresse.
Para Anacleto Oliveira e Rogério
Oliveira (p.151,152), a escravidão era um fenômeno social dos povos antigos, aparentemente
tolerado por Deus dentro de determinadas condições regulamentadas pela Lei de
Moisés (Levíticos 25). O estudo mostra que havia diferenças no tratamento entre
a escravidão regulamentada no Pentateuco, da escravidão entre os gentios da
Ásia Menor, no primeiro século no Império Romano quando da divulgação do
evangelho pelos apóstolos e quando da formação da Igreja, tratada nas cartas paulinas.
Conforme a Lei (Levíticos 25:39), os judeus não poderiam ter escravos de sua
raça, mas diaristas e ainda assim não seriam escravos perpétuos, pois havia um
tempo de escravidão que prescrevia no Ano Sabático. Os escravos de fato só
poderiam ser de origem estrangeiro. No Novo Testamento a escravidão aparece nos
Evangelhos, embora na Palestina houvesse um numero bem reduzido de escravos.
Todavia, tanto judeus como romanos possuíam escravos[ix].
Oliveira (p. 151) salienta a necessidade de compreender o pano de fundo sobre
escravidão existente na Palestina nos dias de Jesus: “conhecer e compreender os
dados do Novo Testamento sobre a escravatura, significa conhecer a sua
existência e a sua prática na Palestina dos primórdios da era cristã,
determinar a atitude de Jesus e analisar as suas repercussões na doutrina e
ação da Igreja primitiva” (Ibidem, p.
151). E continua noutra parte: “O próprio NT, nomeadamente os Evangelhos,
faz-se eco da prática corrente da escravatura na Palestina” (Ibidem, p. 152).
Interessante notar que o conceito neotestamentário de salvação como ‘resgatar’
e ‘remir’, adquirir mediante pagamento que são vistos em Cristo com relação ao perdido e escravo do pecado tem como metáfora na linguagem da escravidão. Saber qual era
a posição de Jesus sobre a escravidão pelas narrativas do evangelho é uma
tarefa difícil. Pois não encontramos elementos suficientes para chegar a uma
conclusão. Nas narrativas das parábolas são as únicas referencias de Jesus à
escravidão e sem qualquer indicação imediata de aprovação ou condenação
(Ibidem, p. 162). A passagem do evangelho do lava-pés durante a última ceia, o
princípio do ensino cristão de ser servo para ser grande no Reino do Céu atinge
o auge do paradoxo; quando Jesus se põe a lavar os pés dos discípulos
considerado um serviço de escravos mais desprezados, os escravos judeus não
eram obrigados a fazê-los. Este gesto chocante se verifica pela reação de
Pedro, era para os discípulos um exemplo a seguir: “se eu lavei vossos pés
sendo senhor e mestre; vós também deveis lavar os pés uns aos outros” (Ibidem,
p. 163). Jesus introduz numa sociedade de senhores o princípio em que todos
devem se tornar escravos para cura que o mal do pecado introduziu nos corações
humanos e assim entrar no Reino de Deus.
O estudo de Oliveira-Oliveira
(p.165) também traz a situação social existente na igreja primitiva que são
vistas nas cartas paulinas pelo grande numero de textos dedicados à unidade e
igualdade entre todos, nas orientações quanto ao comportamento dos escravos e
às orientações escravo-senhor e na doutrina escravidão-libertação. Onde fica
bastante claro o princípio existente na igreja primitiva; o princípio de
unidade e igualdade: “Não há judeu, nem grego; não há escravo nem livre, não ha
homem nem mulher, pois, todos vós sois um só em Cristo”. “Que é um em todos”.[x] “a partir daí o que conta é a condição
idêntica em todos os membros da igreja, na qual todos formam o corpo de
Cristo”. No entanto, o apóstolo Paulo condicionou que todos deveriam permanecer
na condição social em que foram chamados: “se escravos, escravo; se livre,
livre”; e, em sua posição social deveriam dar provas da fé que possuíam e
testemunho de Cristão. Na Igreja, as diferenças sociais deveriam ser
suplantadas pelo amor ao próximo, pela unidade
e igualdade e na sociedade deveriam ser superadas pelo testemunho cristão
(Ibidem, 165-170). Na igreja primitiva não houve de fato uma ideia de abolição
da escravatura nos moldes do séc. XIX, mas se esperava uma mudança da sociedade
que se daria através dos princípios que se viam nos evangelhos, que se traduzia
numa transformação interior do ser: “Se o Novo Testamento não é
revolucionário, é menos ainda conservador: de fato, toda a ordem social é descartada, e não com a força
deste mundo” (Ibidem, 171).
Segundo
Oliveira – Oliveira (p. 180) a perseguiçao e o martírio foi a causa para uma
estreita comunhão entre os cristãos independentemente de suas condiçoes de
homens livres ou escravos. “A participaçao no mesmo sofimento, na mesma
esperança e no mesmo ideial de não renegar a sua fé e de dar corajosamento
testemunho de Cristo, unia os cristão, quer fossem escravos ou livres”. Muitos
foram os escravaos que corajosamente testemunharam sua fé em Cristo nas Arenas
romanas, sozinhos, contrariando a vontade de seus senhores ou juntamente com
eles num pacto de fé. Devido a sua coragem e lealdade à fé cristã suas
sepulturas ficavam lado a lado aos dos homens livres e as inscriçoes funerárias esqueciam as diferenças sociais da vida
terrena (Ibidem, p.181). Nao se pode negar que a Igreja primitiva ‘nunca’
renunciou aos serviços escravos. Qualquer senhor convertido e batizado poderia
ter escravos cristão, mas nas seguintes condiçoes que o tratassem como irmãos e
filhos e igualmente recomenta aos escravos cristãos a amarem seu senhor e no caso de ser cristão, tratá-los como
irmãos e serví-los dedicadamente. Oliveira - Oliveira (p.182) informa que S.
João Crisostomo descreve do seguinte modo as relaçoes que
deveriam existir entre senhor e escravo cristãos:
Que haja reciprocidade de serviço e de subordinação;
desse modo jã não haverá escravidão, Se senhores e escravos se servirem
mutuamente; então é melhor serem escravos nessa condiçao do que senhor em
condiçoes opostas, em que as relaçoes entre um e outro são marcadas pelo
despotismo e pelo servilismo (OLIVEIRA-OLIVEIRA, p.182)[xi].
Na situação em que os senhores eram pagãos, a
recomendação para o escravo cristão era que se submetessem aos seus senhores e
que tratassem bem, para que este não blasfemasse contra a Religião e se indispusessem
contra o cristianismo. Deveriam aceitar livremente a condição social e se
tornarem apóstolos de Cristo junto aos seus senhores, assim como Cristo aceitou
livremente a missão para resgatar os
pecadores perdidos se submentento ao Pai na condição de servo. Este apelo ‘não
deveria ser entendido como forma de ligitimar e sublinhar a existencia da
escravatura para que esta pudesse se perpetuar’. Esta posição da Igreja
primitiva, inclusive na visão de João Crisostomo, atendia duas condiçoes: 1.
‘Dignificar o escravo’ em sua condição social numa comparação com Cristo que se
fez servo de todos e para que ninguem desprezasse os escravos em sua posiçao
social; 2. ‘Investir os escravos de uma missão a cumprir livremente, como cristão
e enviado de Cristo junto à sua familia e ao seu senhor’. “Esta missão era livremente aceita e não uma
imposiçao servil” (Ibidem, p. 183).
O
resultado prático segundo Olivieira - Oliveira (p.184) da aplicação dos princípios
do evangelho na vida socia daquele tempo foi “manumissão, favorecida e tornada
possível pelas novas condições socio-economicas” que era vista “não só como uma
obra humanitária, mas como uma obra de caridade agradável a Deus e como o
melhor modo de alcançar misericórdia, a remissão dos pecados e a salvaçao da
alma”. Ou seja, dar liberdade aos cativos era vista como uma forma de alcançar
a salvaçao. Oliveira-Oliveira continua informando que nas “As atas dos Martires” há o relato de Hermes, que no tempo de Trajano,
libertou 1250 escravos, num domingo de Páscoa. Cromácio, antigo prefeito de
Roma, libertou 1400 deles; Santa Melania
libertou 8 mil num só dia[xii]. Havia casos em que pela
morte de um parente ou amigo se oferecia a Deus a libertação de um ou mais
escravos.
A
igreja primitiva nao pensava em uma emancipaçao dos escravos de forma
ampla; o que se pensava era a extinção pela formação vivida em toda a esfera da
sociedade, primeiramente nas assembleias
cristãs, na vida familiar de seus membros e na politica. “Possuído daquela
força de penetração que é próprio da religião tendia a penetrar na consciência
individual e social e a tornar norma inspiradora de toda a vida”(Ibidem, p.195).
A
conclusão que Anacleto Oliveira e
Rogerio Oliveira (p.196) chegam de seu estudo sobre “Cristianismo e a escravidão” (que aqui faço um resumo), é que seria
muito natural e lógico que as “concepções do cristianismo sobre a instituição
do Império seria muito fácil prever para breve o fim da escravidão.” Tendo em
vista “os princípios cristãos de igualdade fundamental entre todos os homens” e
o “domínio cada vez maior da Igreja sobre as realidades temporais, mas isto só
na teoria, pois na prática foi muito mais complexa. A escravidão continuou a
existir mesmo em regiões onde a Igreja demonstrava sua poderosa influência”.
Anacleto
Oliveira e Rogerio Oliveira enumeran duas possiveis razões do fracaço da Igreja
em extinguir com a escravidão:
1)
A partir do século
IV, o cristianismo foi marcado por um espiritualismo que desmobilizou do seu empenho
de transformar a sociedade. A dificuldade econômica e social vivida pelos cristãos levaram a
pensar numa salvação espiritual transcendental
e eterna separada da libertação e salvação deste mundo. A visão dualista
que “desvalorizava a vida terrena e favor de uma vida ulterior e super-uranica
e de nítida influência platônica”. “De fato o neo-platonismo dominou os meios
cristãos”. A teologia vertida por Santo Agostinho e exposta na obra ‘A cidade de Deus’ – que iria dominar
o pensamento medieval.
2)
A acomodação da
Igreja frente à constantinização a partir do IV século devido aos privilégio concedidos pelo Estado; fez com que a Igreja
perdesse a força de provocar impacto e poder de transformação na sociedade de
acordo com os ensinamentos recebidos de Cristo e dos Apóstolos. “Quando a
Igreja se tornou proprietária, possuindo também ela escravos em grande número,
nessa altura sua capacidade de intervensão ficou extremamente reduzida”
(OLIVEIRA-OLIVEIRA, p.196).
A
citação de M. Bloc por Olivieira-Oliveira (p. 197) onde nos cânones conciliares
os bispos da Igreja proibiam os padres de libertarem seus escravos das
propriedades eclesiásticas e dos abades de emanciparem os escravos dados aos
seus mosteiros remete ao Direito Romano de propriedade, pois para o clero “os bens da Igreja era em
princípios inalienáveis e os seus administradores não deveriam dispor deles
segundo razões de piedade”.[xiii] Oliveira- Oliviera
finaliza dizendo que estes cânones descrevem uma mudança na mentalidade das
lideranças cristãs; “é evidente um compromisso da caridade cristã com as ordens
estabelicidas a partir da paz de Constantino e do consequênte enquadramento da
Igreja nas estruturas imperiais”.
Segundo
Oliveira-Oliveira (p. 198) não pode deixar negar que a atuação do cristianismo
na escravatura antiga: “esta praticamene despareceu. Os escravos tornaram-se
servos. Ainda que formassem uma classe social inferior, dependente, explorada e desprezada; eram considerados como pessoas,
e como tais, pertencia à sociedade que serviam”. A escravidão nunca deixou de
existir na Idade Média e estava presente entre todos os povos cristãos ou
pagãos, católicos, judeus e muçulmanos. As invasões bárbaras fez perpetuar o
tráfico de escravos e a escravidão nesse período, pois os derrotados nas guerras
eram feitos escravos ou levados cativos para serem comercializados tanto adultos
como criança de ambos os sexos. A lei que basicamente regulamentavam e
legitimavam a escravidão foi o Direito
Romano[xiv], depois surgiram outras
leis como o Direito Germânico e na Igreja Católica o Código do Direito Canônico.
Altamente
lucrativa o tráfico e comércio de escravo perdurou por toda a era medieval.
Havia rotas comerciais de escravos que cortava o continente europeu e africano
trazendo escravos de diversos pontos do mundo; Eslavos, muçulmanos, celtas e
cristãos. Apesar do esforço e proibições dos papas em impedir que cristãos se
tornassem escravos; a prática nunca se
estinguiu nesse período.[xv] Italianos de Veneza,
Judeus, muçulmanos e ibéricos (mouros), Vikings, mongóis e britânicos, todos praticavam
trafico de escravos. O comércio de escravos na Inglaterra foi oficialmente abolido em 1102
por força e decisão do bispo de Cantuária[xvi]. No Concílio de
Westminster, o clero britânico condenava a escravidão contrária aos
ensinamentos de Cristo e declarava: “Let no one hereafter presume to engage in that
nefarious trade in which hitherto in England men were usually sold like brute animals."[xvii] Outros países seguiram o exemplo, na Polônia a
escravidão foi proibida no sec. XV. Na Lituania, em 1588 a escravidão foi
abolida.
À parte, a escravidão praticada
pelos países católicos e protestantes a partir do sec. XV não encontram
fundamentação bíblica favorável. Também, ao considerar o contexto histórico-social
e a problemática existente no Brasil envolvendo Estado, Igreja e escravocratas que
disputavam poder, e de outro lado, os abolicionistas liberais, sociedade livre favorável
a emancipação e os negros que se esforçavam pela libertação. Também, não
encontramos nestes grupos ou em particular uma ‘voz profética e discursiva’ que
tangenciasse os pensamentos a fim de formar opinião teológica favorável à
abolição. Os discursos favoráveis à abolição vinham de representantes
políticos, de integrantes de movimentos abolicionistas, advogados, escritores e
jornalistas que usavam o palanque, a tribuna e a imprensa para atacar a
escravidão. Portanto, as vozes estavam e vinham de fora do clero e tinha
conteúdo politico e social, ético-moral e com objetivos filantrópicos.
e. O desvio de propósito da Igreja.
Como vimos até aqui, o catolicismo brasileiro
sempre esteve ligado ao Estado pelo sistema de Padroado e em constantes tensões,
devido a conflitos de interesse, de autonomia e poder. A Igreja Católica pretendia
a romanização nos termos do Concílio de Trento da qual lhe daria maior
autonomia nos assuntos eclesiásticos. Todavia, o lugar ao lado do trono lhe parecia
confortável, lhe dava prestígio e a mantinha no poder diante da eminente
presença do protestantismo. Para a Igreja Católica qualquer oposição aos
interesses do Estado se constituía subversão, assim os ideais republicanos (isso
incluía a abolição do elemento servil), estava fora de seus planos. A Igreja
permaneceu fiel ao lado do trono até o último instante de sua destituição por
ocasião da Proclamação da República. Estado e Igreja são destronados pela República.
A Igreja perdeu a parceria da Corte e o privilégio como única religião no país.
Isso nos faz ver que a Igreja foi mais
fiel ao seu ‘senhor’ secular do que propriamente aos princípios constituídos
nos Evangelhos. Princípios estes, que estão nos ensinamentos de Jesus
Cristo.
Desta forma, devemos fazer uma análise
da relação Igreja-instituição e Estado, visto que nesta relação de político-religiosa
há conflitos de interesses e são formadores de discurso e de intensões
teológicas. A fé religiosa estabelece seus tentáculos com a finalidade de
perpetuar seus domínios sobre o governo e na mentalidade da população:
O objetivo da
qualquer instituição religiosa é propagar sua mensagem religiosa. Dependendo da
percepção que tenha dessa mensagem, pode vir a se preocupar com a defesa de interesse, tais com sua
unidade, posição; em relação às outras religiões, influência na sociedade e no
Estado, o número de seus adeptos e sua situação financeira (MAINWARING, p.16).
Segundo
Scott Mainwaring (p.16), toda instituição tem a preocupação de se expandir e
por isso ‘pode usar métodos que são inconsistentes com os objetivos da mensagem
inicial’. Seu objetivo principal é oferecer o caminho da salvação, mas para que
isso ocorra, precisa se equipar para a missão: vencer a concorrência e se
manter no poder. A preocupação pode adquirir uma dinâmica própria e ajuda a
determinar as ações da Igreja. Ao competir com outras religiões (ou com os
interesses em conflitos), pode se empenhar em práticas inconsistentes quanto ao
seu próprio credo. “Assim a proteção de seus interesses pode entrar em conflito
com a mensagem inicial”:
A cristandade
argumenta, H. Richard Niebuhr, frequentemente alcança aparente sucesso ao
ignorar os preceitos de seu Fundador. A Igreja quanto organização interessada na
autopreservação e no ganho de poder, por vezes considera os conselhos da Cruz
um tanto inconvenientes, como o fazem grupos econômicos e nacionais. Ao lidar
com grandes males sociais, tais como guerras, a escravidão e a desigualdade
social, a Igreja descobre ambiguidades convenientes no Evangelho e isto lhe
permite violar o espirito da Bíblia e aliar-se ao prestígio e ao poder (Ibidem,
p. 16).
Scott
Mainwaring salienta ainda que a tendência de proteger os interesses da
instituição não significa a ausência de uma fé sincera e que também a pura fé
só ocorra fora das Igrejas institucionais. No entanto, para algumas
instituições, a defesa de interesse é essencial para a promoção da fé, pois,
“dentro desta ótica, já que a salvação só pode ocorrer através da instituição,
a Igreja entende que precisa desses recursos para desenvolver a sua missão com
eficácia[xviii]:
A tendência de proteger os interesses organizacionais tem sido e continua sendo,
dessa forma, um elemento chave do envolvimento da Igreja Católica na política”(Ibidem,
p.16).
Para Mainwaring (p.18), a Igreja
possui uma hierarquia de objetivos que abrange desde os objetivos máximos (salvar
e transmitir sua mensagem) até a preocupação instrumental, tais como expansão
da instituição, posição financeira sólida, posição sobre o Estado e elite. Estes são objetivos instrumentais que a igreja
não necessariamente tem que adotar para cumprir a sua missão religiosa. Assim,
conclui: “a forma pela qual a Igreja intervém na política depende
fundamentalmente da maneira pela qual se percebe sua missão religiosa” (Ibidem,
p.21). Dessa forma, segundo o autor, se
constrói uma auto identidade com a sua missão que se expressam por meio de
discurso e práticas. Noutra parte, Scott Mainwaring (p.24) continua: “Quando o
fim fundamental da instituição for suprarracional, ela disporá a sacrificar alguns
interesses, caso esteja convencida de que fora chamada para fazê-lo”. E afirma
ainda que a Igreja-instituição poderá abrir mão dos objetivos instrumentais “se
sentir que sua missão religiosa a obriga a agir dessa maneira”.
Foi o que aconteceu com a Igreja
Católica no séc. XX, quando passou a se preocupar com a sua real missão, se
voltando para a população mais pobre, a Igreja se transformou. Na medida em que
mais se preocupava com a sua missão; e as mudança politicas e sociais ocorriam,
afetavam o seu ideário e novas reflexões internas se faziam necessária para
renovar sua missão dentro do novo quadro que se formava. Logo, sua identidade
se modificou não por causa dos interesses da instituição, mas por causa das
suas convicções de fé e missão que se formaram dentro das mudanças sociais e
políticas que se apresentava (Ibidem, p.25).
“Precisamos
compreender a auto-identificação da instituição; como se expressa através de seu
discurso e de suas práticas. Assim como as mudanças sociais que possam alterar
essa identidade (Ibidem, p.26)”.
Este estudo começou com a Igreja
Católica do séc. XV permitindo e legitimando seus súditos a conquistar,
capturar, prender, escravizar e a matar em nome da Igreja com a promessa de
salvação eterna em consórcio com os poderes temporais dos reis. Esta
legitimação foi concedida através das bulas papais daquele século. Na prática,
sua teologia era opressora, destituída de amor ao próximo, preconceituosa, sectária,
arrogante e materialista. Expressa mais as forças do inimigo do que a vontade
de Deus. Esta mesma instituição no final do séc. XIX, está promovendo a vida,
incentivando seus súditos a dar libertação aos cativos, amar o oprimido como
irmão e membro da família sob promessa de perdão de pecados e salvação eterna.
Em parceria com a sociedade, o bispo promove movimentos, lidera reuniões, arrecada
fundo, libertam seus cativos, idealiza leis de proteção e libertação. Tudo em
nome da caridade (amor) e sob a promessa de salvação. Sua leitura do Evangelho é
tangenciada pelos dogmas católicos que não permite afirmar claramente que
precisa obedecer aos mandamentos do Senhor Jesus se quisesse ter parte com Ele
e salvação da alma.
O
papa merecia uma prenda pelo seu Jubileu, mas muito mais o negro deveria ser
libertado pelo simples fato dele ser irmão. A cor da pele não define destino
eterno e nem caracteriza classe social. A cor somente me ensina a amar e
conviver com o diferente. São como as cores do arco-íris onde os diferentes
estão lado a lado numa beleza sem igual e admirável. O pardo, o branco, o
amarelo, o negro, o mulato, o moreno, o albino, o indígena são as cores da
beleza humana abençoada por Deus.
f. Acontecimentos dos últimos dias
A
participação da igreja nos últimos dias do processo final de emancipação do
elemento servil, não fica bem claro na história do Brasil. O que sabemos, é que
a participação da igreja nos últimos anos aconteceu de forma apática, pois este
é o lamento de Joaquim Nabuco em campanha na Província de São Paulo pela
abolição, que destaco:
(...) que efeito
prodigioso não faria a palavra do sacerdote que realmente pregasse a moral
social do evangelho! Mas onde já se viu um missionário abolicionista! (...)
ainda não houve no Brasil um bispo que levantassem a voz contra a escravidão,
como os houve para levantar a voz contra a maçonaria, apesar de estar a
escravidão mais condenadas por bulas pontificiais – e por concílios – do que a
maçonaria (HAUCK, p. 279).
Sabe-se
que a Lei Áurea foi aprovada em tempo recorde. A Assembleia dos Deputados
recebeu o texto do Ministro Rodrigo Silva na terça, dia 8 de maio, passou pelo
Senado no domingo dia 13 e foi aprovada e no mesmo dia. Coube a Princesa Isabel
sancionar a Lei por volta das 14 horas. O Papa Leão XIII era favorável à
emancipação dos escravos, pois já tinha se manifestado a respeito ao enviado
especial a Roma. O Ministro João Artur de Souza Correia, por
ocasião de sua audiência com o papa no seu Jubileu 14 de Janeiro de 1888 disse:
“(...) desejamos dar ao Brasil um testemunho todo particular de nossa paternal
afeição a respeito da emancipação dos escravos”. Dirigindo-se à princesa: “A
princesa imperial regente cumpre uma grande e nobre tarefa (...): mas ela pode
contar com a nossa solicitude que nunca lhe faltará” (RAUCK, p. 284)[xix].
Em 10 de fevereiro de 1888 o Pontífice recebe o abolicionista Joaquim Nabuco
que insistia numa palavra do papa: “A palavra da V. S. exerceria maior
influência no ânimo do governo e na pequena parte do país que não quer acompanhar
o movimento nacional. Esperamo-nos que V.S. dirija uma palavra que prenda a
consciência de todos os verdadeiros católicos” (RAUCK, p.285)[xx].
Devido a reações do governo conservador do Gabinete de Cotegipe e ações
diplomáticas, a encíclica do papa foi atrasada e somente em 05 maio foi
redigida e o Brasil tomou conhecimento quando já não havia mais escravos. O
papa presenteou a princesa com a pena de ouro e felicitou-a pelo feito.
[i]
O Padroado Régio ultramontano foi concedido ao rei de Portugal no sec. XV pelo
Papa e dava amplos poderes ao rei sobre a igreja. O papa Leão XII (ϯ1823-1829)
reconheceu a independência do Brasil em 1826 e confirmou o bispado a rei D.
Pedro I.
[ii] Feijó atual como Ministro da
Justiça na Regência Trina Permanente de 17/06/1831 a 12/10/1835, e na Regência
Uma de 12/10/1835 a 18/09/1837 (Santos, p.132).
[iii] Galicana- tendência separatista
da Igreja Católica do poder de Roma e ao Papa (fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Galicanismo). Febroniana doutrina que reduziu a autoridade
papal e exaltou a autoridade dos bispos (fonte: https://www.bibliatodo.com/Diccionario-biblico/febroniano-febroniana
[iv] Os documentos papais foram Mirai
vos (1832) e Quanta Cura (1864) e seu anexo Silabus. Nestes documentos o
papa ressalta a necessidade de combater
os inimigos da Igreja, o valor do
celibato e do matrimonio, condena o indifentismo, o racionalismo, liberdade de
pensamento e de imprensa e a separação entre Igreja e Estado. Na Silabus o papa condena a independência do
homem dos ditames da igreja, condena o marxismo, o racionalismo e as sociedades
secretas, inclusive a maçonaria (Santo p.133).
[v] A Ordem de Nosso Senhor
Jesus Cristo originalmente era uma ordem
religiosa e militar,
criada a 14 de março de 1319 pela bula pontifícia Ad ea ex-quibus do Papa João
XXII, que, deste modo, atendia aos pedidos do rei Dom Dinis. Recebeu o nome de Ordem dos Cavaleiros de Nosso Senhor Jesus
Cristo[1] e
foi herdeira das propriedades e privilégios da Ordem do
Templo. Em Maio desse mesmo ano, numa cerimónia solene que contou
com a participação do Arcebispo de Évora, do Alferes-Mor do Reino D. Afonso de Albuquerque e de outros
membros da cúria régia, o rei Dom Dinis ratificou, em Santarém, a criação da
nova Ordem. Foi-lhe concedido como sede o castelo de Castro Marim; mas em 1357 já a
sede tinha sido instalada em Tomar, anterior sede templário. Em 1789 a Ordem de Cristo foi
secularizada, tornando-se uma ordem honorífica até sua extinção, em 1910, com
a implantação da República Portuguesa.
A ordem foi refundada em 1917 como a Ordem Militar de Cristo e é presidida
pelo seu grão-mestre, o Presidente da República Portuguesa
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_de_Cristo).
[vi] VASCONCELOS, Dr. Sergio S.
Duets. apud HOONAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro. 1550-1800.
Petrópolis: Vozes, 1978, p.35.
[vii] VASCONCELOS, p.41 apud CINTRA,
Raimundo. Candomblé e Umbanda, o desafio brasileiro. São Paulo: Paulinas, 1985,
p. 36-38. E VASCONCELOS, p. 41 apud CINTRA, 1985, p. 87
[viii] NEY SANTO, P. 05 - Anais do XXVI Simpósio Nacional de História –
ANPUH • São Paulo, julho 2001.
[ix] Jo. 18:10 fala de Molco, escravo
do Sumo Sacerdote de quem Pedro cortou-lhe a orelha; Flavio Josefo fala de
Corinto guarda do corpo de Herodes (OLIVEIRA-OLIVEIRA, p. 156).
[x] Galatas 3:27, Colossenses 3:11.
[xi] OLIVEIRA-OLIVEIRA, (p.182) apud
“in Epíst. ad Efésios homilia”. XIX, 5; PG. T. LXII, col. 134.
[xii] OLIVEIRA-OLIVEIRA, (p. 185) apud
J. Guirald, Histoire Partiale, p. 159 e J. Guillen, La escravitude, p.81.
[xiii] OLIVEIRA-OLIVEIRA, p. 197 apud
M. Bloch, Mélanges, pp.272-273.
[xiv] A definição básica de escravo na lei Romano-Bizantina foi: 1) alguém
cuja mãe era uma escrava; 2) qualquer pessoa que tenha sido capturada em
batalha; 3) qualquer pessoa que tenha vendido a si mesmo para pagar uma
dívida. Foi possível, no entanto,
tornar-se um liberto ou um completo cidadão; tanto no Código Justiniano,
como o direito Romano, havia extensas e complicadas regras para a libertação dos
escravos. https://pt.wikipedia.org/wiki/Escravid%C3%A3o_na_Europa_
Medieval#cite_note-59m, visto em
22/09/17.
[xv] Comércio de escravos: A demanda do mundo Islâmico dominou o comércio de
escravos na Europa medieval. Durante a maior parte do tempo, no entanto, a
venda de Cristãos escravos para os não Cristãos foi banido. No pactum Lotharii de 840 entre Veneza e o Império Carolíngio, Veneza prometido não comprar escravos cristãos
no Império, e não vender escravos Cristãos para Muçulmanos. A Igreja
proibiu a exportação de Escravos Cristãos para as terras não Cristãs, por
exemplo, no Conselho de Koblenz, em 922, no Conselho, de Londres, em 1102, e o
Conselho de Armagh em 1171. (fone: https://pt.wikipedia.org/wiki/Escravid%C3%A3o_
na_Europa_ Medieval., visto em 22/09/17 às 17:05 h .
[xvi]
British History Freedom – Timeline – 12th Century,
Disponivel http://www.britsattheirbest.com/
freedom/f_time_12th_century.htm, visto em 22/09/17 às 17:27 h.
[xvii] Tradução Geogle: "Ninguém,
em seguida, presuma-se para se envolver nesse comércio nefasto em que até
então, na Inglaterra, os homens costumavam ser vendidos como animais
brutos". http://www.britsattheirbest.com/freedom/f_time_12th_century.htm,
visto em 22/09/17 às 17:24.
[xviii] Foi nesse sentido que proclamada
a Republica e promulgada a Constituição
de 1891 quando a Igreja se viu vulnerável, uma vez que o Brasil se tornou uma
nação Laica.
[xix]
Rauck, p.284 aped Leão XIII. Discurso
pronunciado na audiência ao enviado especial
do Brasil, Ministro João Artur de Souza Correia em 14 de Janeiro de 1888
in Moniteur de Rome, edição de 19 de
janeiro de 1888. Arquivo do Itamarati, M.D.B. 209/4/8. 1882-18888.
[xx] Rauck, p. 285 apud Nabuco,
Carolina. A vida de Joaquim Nabuco.
Col. Documentos Brasileiros. 92, 4ª. ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1958
[114].
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