COMPARTILHAR

DESTAQUE

A ESCRAVIDÃO NA BÍBLIA.

Este texto e parte integrante  de um artigo maior postado neste blog: A TEOLOGIA PRESENTE NOS DISCURSOS DA IGREJA CATÓLICA       NO FIN...

07/12/2019

A TEOLOGIA CATÓLICA E A ESCRAVIDÃO


(Este texto é parte integrante do TCC apresentado a banca da Faculdade Paschoal Dantas em dezembro de 2017 para graduação em Bacharel em Teologia pelo autor deste blog)


CAPÍTULO TRÊS

1.    A TEOLOGIA CATÓLICA E A ESCRAVIDÃO



3.1.  Catolicismo brasileiro: religião oficial e formação da teologia.

            O catolicismo foi a realidade religiosa oficial do Brasil desde sua colonização e continuou no Brasil Império (1822-1889), no primeiro por força da Constituição de 1824 no seu art. 05, a qual afirmava:

A religião católica apostólica romana continuará sendo a religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo”.

            O proselitismo e as construções de templos não eram permitidos, o que impedia o crescimento do protestantismo. Depois por tradição ibérica e imposição do clero católico que via no sistema Padroado a saída para a dominação religiosa territorial.
             O regime de Padroado[i] continuou existindo no primeiro reinado, este controlava a administração e os assuntos eclesiásticos católicos.
Para Ney Souza (p.129) o padroado teve dois momentos no Brasil: o primeiro que vai de 1826 até 1840 com o início do segundo reinado. Era uma igreja nacional totalmente controlada pelo rei e posteriormente pelo Regente Feijó que exercia poder que permitia controlar os assuntos da igreja: nomear bispos e prover outras funções eclesiásticas; conceder ou negar beneplácitos régios aos decretos papais antes de serem divulgados no Brasil. O papa era reconhecido como chefe honorífico, mas sem uma efetiva participação sobre os assuntos da Igreja Nacional. E, o segundo período de 1840 até a Proclamação da Republica em 1889. Nesta fase se verifica grande mudança na relação Igreja e Estado, “principalmente no pensamento católico do que são as atribuições dos negócios eclesiásticos”. 
            A primeira fase do Império (1826-1840) foi fundamental para a formação do pensamento teológico católico brasileiro, por ser um período de continuação da dominação do poder civil sobre o eclesiástico (principal característica do padroado) que chega a ser uma dominação e controle de quase opressão, visto que o Estado retardava os negócios da Igreja e os clérigos não passavam de funcionários públicos em vez de ministros da igreja Católica. Segundo Ney Santos (p.130, 131), essa condição influenciava no pensamento ministerial do clero: “Tal fenômeno não deixaria de influir na mentalidade dos sacerdotes e em suas atividades pastorais, bloqueando sua capacidade de iniciativas e sujeitando-os a rotina de trabalhos oficiais e sistematicamente controlado pelo Estado”. Dessa condição que se mostrou ambígua para a Igreja vai surgir uma nova teologia que levará a grandes divergências entre o poder espiritual e o temporal que vai resultar na “Questão Religiosa (1872-1874) e finalmente a separação entre Estado e Igreja pela Proclamação da Republica em 1889”.
            O período em foco estava sob Regência do Padre Diogo Antônio Feijó (1784-1843)[ii], quando esteve à frente do país por duas ocasiões;  período  marcados  por inúmeras revoltas e revoluções populares e pela baixa credibilidade do clero junto ao povo provocado pelo distanciamento da igreja;   devido a escassez de padre, concubinato de padres e com família e a indolência ministerial, por causa disso se ansiava por reformas no corpo clerical e dos objetivos missionários da igreja e sua autonomia como instituição nacional.  
            Sobre este período, segundo Ney Santos (p.132), o que é importante para a “teologia no império é a percepção que estes pensamentos, projetos e práticas estão alicerçados na doutrina galicanas e febroniana[iii], preconizando assim uma igreja nacional”. Toda esta ambientação política e religiosa vai preconizar na mentalidade teológica desfavorável à abolição dos escravos calcada na sociedade de dominação branca.
            A afirmação de Ângela Rodholfo Paiva ao falr sobre “Catolicismo brasileiro: harmonia no reforço da desigualdade” escreve:

A esfera religiosa no Brasil vai adquirindo idiossincrasia que lhe confere identidade própria, sendo mesmo mais apropriada falar em “catolicismo brasileiro”. De uma certa maneira, a prática religiosa vai exacerbar as características mais marcantes do catolicismo trazido de Portugal em virtude dos acontecimentos específicos na história brasileira (PAIVA, p.44).

            Os agentes externos para a formação do pensamento católico em relação ao negro estão dialeticamente relacionados a ambição portuguesa para a colonização de seus territórios, e no período monárquico este pensamento não era diferente. A necessidade da mão de obra escrava, os interesses dos grandes proprietários de terra e senhores de escravos em uma nação exclusivamente agrária reforçada pelo pensamento católico português da desvalorização da raça negra e a busca ambiciosa do enriquecimento pessoal. A combinação ou a somatória desses fatores vão se tornar barreiras intransponíveis para a libertação dos negros.
            O catolicismo, desde o século XVI, é a marca da vida social brasileira. Souza afirma que “Não se entendia a realidade sem uma explícita referência ao transcendente e à Igreja Católica, esta última vista como representação visível da divindade” (Souza, p. 129). A vida religiosa estava presente em todas as esferas estruturais da sociedade, seja nas dimensões públicas e oficiais, nas domésticas e pessoais. Souza (p.130) afirma que “nesse tipo de cristandade, as esferas cíveis e eclesiásticas praticamente se identificam, e o cidadão é obrigatoriamente cristão. Há uma sacralização das estruturas sociais e politicas. Estará neste ponto a raiz do processo de dessacralização do sagrado”.   
            Na segunda fase do império de 1840 até a Proclamação da Republica em 1889 se verificou considerável mudança na relação Igreja e Estado, “principalmente no pensamento católico do que são as atribuições dos negócios eclesiásticos”.
            Para entender o pensamento teológico católico no Brasil do Segundo Império, é necessário perpassar pelos fatos políticos e religiosos dominantes no Primeiro Império que teve implicações próprias de uma Igreja Nacional com a ausência da dominação papal. No Segundo Império aconteceu uma mudança drástica no governo da Igreja. Começando pelas ações adotadas pelos papas Gregório XVI (1831-1846) e Pio IX (1846 - 1878) com objetivo de combater “o pensamento científico, restaurar valores da sociedade medieval, inclusive princípios filosóficos e teológicos, apregoou a necessidade de subordinação do homem à ordem sobrenatural”. Combater os pensamentos revolucionários e modernos e trazer a igreja sob o domínio Ultramontano[iv]. As pregações são voltadas para a humildade e obediência a hierarquia a autoridade eclesiástica.    No Brasil nesse período do Segundo Império os bispos reformadores foram lentamente introduzindo as orientações papais de uma igreja segundo o modelo do Concilio de Trento e preocupada com a evangelização do fieis; para isto, foi opondo as ações do rei, ao clero liberal que desde o início do império sustentava a ideia de uma igreja regalista e submissa ao poder imperial; combateram a maçonaria dentro da igreja, formaram e nomearam padres em diversas dioceses. Para contrabalançar o rei procurava nomear somente bispos que tinham vínculo, “tendência conservadora”. Assim, o bispo encontrou espaço para se manifestar em diversas dioceses do país. Envolveram-se a imprensa e considerável parcela da população; foi um período de profundas tensões entre o governo e a igreja que abalaram a monarquia, uma das grandes tensões foi a chamada Questão Religiosa (1872-1875), cujo epicentro dessa tensão foi a proibição do clero na participação da maçonaria ou em qualquer cerimônia maçônica. Daí se desenrolou um conflito envolvendo a maçonaria e dois bispos: o bispo de Olinda, D. Vital, e do Pará, D. Antônio de Macedo Costa (SANTOS, p.136).
O jornal de D. Vital, A União, publicou artigos que “criticavam a liberdade de culto e pensamento, a separação entre igreja e Estado e colocava a Igreja acima do poder civil, ao insistir que as leis dos homens não podiam ser distinguidas das leis de Deus”. O fato é que o ‘caldo engrossou’ entre a maçonaria e a Igreja. A tipografia do jornal ‘A União’ invadida e um padre morto a facada. O bispo havia lançado um interdito a duas capelas de irmandade que se recusava a expulsar os confrades maçons. O rei interveio, mas suas ordens não foram compridas, pois afirmavam que fora por ordem do papa. Toda decisão, ordem, etc. do sumo pontífice deveria passar pelo beneplácito do rei. Foi neste sentido que os adversários aproveitaram para afirmar que o papa estava intervindo em assunto nacional. O bispo D. Vital foi preso juntamente com o bispo do Pará D. Antônio Macedo Costa, e ambos, condenados às penas de quatro anos em trabalhos forçados. Em 1875 a pena foi revogada e os bispos anistiados chegando ao fim a Questão Religiosa. No entanto, no final a monarquia saiu enfraquecida e desacreditada. A hierarquia clerical se mostrou “intransigente a certas medidas de caráter secular e a reinvindicação de conservar o lugar privilegiado no plano espiritual que sempre detiveram junto ao poder” (SANTOS, p.137). 
            As reformas realizadas pelos bispos nesse período foram estritamente de cunho clerical, seus objetivos era um padre santo e reto, comprometido com a ordem espiritual e inteiramente voltado para as coisas do alto. O celibato deveria ser observado como condição necessária para a ideal missão evangelizadora de uma população de fieis que vivenciava uma religiosidade classificada como fanática e supersticiosa. Era necessário, portanto restaurar a religiosidade nos ditames do culto oficial e às normas romanas.  Santos (p.137) salienta que não é possível generalizar a situação problemática de grande parte do clero, pois poderia se pensar que somente depois da reforma que o clero entrou na via reta. Segundo Ney Santos (p. 139), o que se verifica nesse Segundo Império (1840-1889) é a “participação nula do clero nos movimentos de abolição e no processo de Proclamação da República liderado pela burguesia liberal. Portanto, não houve até aqui um projeto social que envolvesse tanto o pobre como escravo como fim último da missão da Igreja”.

a.    A evangelização católica e a doutrina escravista em perspectiva histórica.

            O catolicismo no Brasil do séc. XIX em suas relações favoráveis à escravidão, não advém da orientação bíblica do Pentateuco segundo a Leis de Moises ou da posição cristã do Novo Testamento, mas está relacionada a uma construção histórica envolvendo política, economia e principalmente teologia católica como já foi descrito aqui. De uma construção histórica por que o catolicismo desde seus primórdios teceu relações íntimas com o poder temporal.
            Resumindo, o Reino de Portugal surge politicamente e territorialmente no séc XII e economicamente através do comércio marítimo na costa da África ainda no séc. XV. Sua relação com o catolicismo se destaca após a criação da Ordem de Cristo[v] (remanescentes dos Cavaleiros Templários), com fins religiosos e militares, soldados e missionários conquistadores a serviço da coroa portuguesa.
            As raízes da formação do pensamento favorável à escravidão, da legitimação à permissão da escravidão africana tem origem bem antes de 1500 e bem longe do território brasileiro. Começa com as conquistas portuguesas e principalmente com o infante Dom Henrique, o navegador (1394-1460) e grão-mestre da Ordem de Cristo, que fez de Portugal uma potência marítima.
            Segundo Eduardo Hoornaert (p.32) o ‘sucesso’ das expedições da Ordem de Cristo “trouxe as portas do reino preciosas mercadorias nunca dantes vistas: ouro, marfim, tintas, pimenta, açúcar e finalmente em 1441, escravos africanos”. Em 1443, a ‘expedição de Lançarote “trouxe para Portugal 245 escravos, onde 46 dos quais foram dados ao infante que prontamente ofertou à Igreja de Lagos”. 
            Em nome da coroa de Portugal e da Igreja, a Ordem de Cristo combateu contra os Sarracenos ao norte da África estabelecendo domínio territorial para Portugal ao longo da costa africana e levando o catolicismo aos povos pagãos. A conquista e dominação territorial vai se confundir com evangelizar e tornou um meio de forma de expansão do catolicismo.  Sob a sombra do brasão da Cruz da Ordem estampados nas velas e de carona nas caravelas,  os missionários católicos  romanos  encontraram amparo e solução para expandir seus domínios  territoriais, visto que na Europa estava perdendo terreno para os protestantes e no norte da África e na Ásia Menor para o Islamismo.

b.    Expansão territorial e evangelização do negro.

            Dr. Vasconcelos (p.40) escrevendo sobre a evangelização católica em território brasileiro faz a seguinte referencia: “A expansão dos interesses econômicos da coroa portuguesa se confundia com a expansão do catolicismo. A conversão ao cristianismo se confundia com submissão à coroa portuguesa: aceitar ao evangelho, anunciado pelos missionários era ao mesmo tempo aceitar a coroa”  (VASCONCELOS,  p.40).[vi]  
            Muitos autores destacam que os negros capturados eram batizados antes mesmo de embarcarem para o Brasil ou quando chegavam a portos brasileiros antes de serem vendidos aos engenhos. Dom João II (1455-1495) ordenou que os negros fossem marcados a ferro-quente como prova de o imposto já havia sido pago na África e esta marca servia como prova de certificado de batismo cristão, posteriormente Dom João IV (1604-1656) substitui a marca por uma argola pendurada no pescoço que tinha o mesmo objetivo. A alma do negro sem o batismo era vista como habitação de demônios (VASCONCELOS, p. 41)[vii].
            Segundo Viotti da Costa (p.17) “muitos chegaram a justificar a escravidão, argumentando que graças a ela o negro era resgatado da ignorância em que vivia e convertido ao cristianismo e que a conversão libertava os negros do pecado e lhes abria a porta da salvação eterna”.
            Na África e no Brasil o negro era visto como mercadoria, moeda corrente e objeto de troca, necessário para o trabalho e continuidade do projeto colonizador português, inclusive das missões jesuítas que foram se instalando no litoral brasileiro na medida da necessidade expansionista colonizadora e não por uma demanda missionária. O sistema colonizador português não supria as necessidades financeiras das missões jesuítas, e por isso precisavam se manter de modo independente. Viram nas fazendas produtivas a forma de independência financeira do regime de padroado e para suprir a demanda de mão de obra nas fazendas necessitavam de escravos. A igreja que libertava, também escravizava; isso só é possível entender dentro daquele contexto do sistema colonial. Em via de regra, o discurso era: “Não se encontra gente de trabalho para se contratar: o único remédio é ter escravos”. Esta foi a declaração do Padre Serrão. O Pe Manuel da Nobrega de Olinda, em 1551 pediu escravos ao rei D. João III com a finalidade de manter a missão.
             Para a subsistência da missão foi necessário (no ano de 1568) a congregação provincial de Portugal aprovar a escravização africana; e em 1576 a proibição da Companhia de Francisco de Borja para a escravização indígena foi cancelada com a devida ‘participação humanitária’ do Padre Anchieta conhecida universalmente. Sob os argumentos de não haver mão de obra livre para manter as missões, mas na realidade a escravidão foi sendo introduzida e tolerada entre os religiosos. Não passou muito tempo para que o comércio e o tráfico acontecessem entre os jesuítas e religiosos (HOORNAERT, p. 36-40).
            Foi este contágio com materialismo o lamento de Joaquim Nabuco em seu livro ‘O abolicionismo’ escrito no final do séc. XIX, como informa Eduardo Hoornaert:

[...] que efeito prodigioso não faria a palavra do sacerdote que realmente pregasse a moral social do evangelho! Mas onde já se viu um missionário abolicionista! [...] ainda não houve no Brasil um bispo que levantassem a voz contra a escravidão, como os houve para levantar a voz contra a maçonaria, apesar de estar a escravidão mais condenadas por bulas pontíficiais – e por concílios – do que a maçonaria (HAUCK, p. 279).

 Desde o séc. XVI, o negro começa a fazer parte do projeto português de exploração e colonização e a ser incorporado ao projeto das missões religiosas. Naquela época os padres eram isentos das tarifas alfandegárias cobrados sobre os escravos que adquiriam.    
            Dessa forma, o conceito de evangelização aos povos não alcançados não surge de uma conscientização bíblica apostólica integral, mas surge no contexto colonizador  português de exploração e dominação geográfica característica daquela época histórica que se apresentava no mundo europeu, juntamente com o cristianismo daquele momento com todos os seus vícios dogmáticos e autoritarismo, e principalmente de disputa de poder entre o catolicismo e outras formas religiosas que despontavam espaço territorial e poder espiritual sobre o temporal, ou seja: o poder da Igreja sobre as decisões do Estado.  
             A relação de missão e colonização ganha instrumentos legais concedidos ao rei de Portugal como o direito de Padroado Régio a partir de 1442; um direito de conquista por serviços prestados a Santa Sé.
            Portugal tornara “senhor dos mares nunca dantes navegados, organizador da igreja em termos de conquista e redução, planificador da união entre missão e colonização”; tudo convalidado e autorizado pelas bulas papais (HOORNAERT, p. 34-35).

c.    Raízes da formação doutrinária

            Uma nova ideologia foi se formando a partir das primeiras conquistas de Portugal em costas africanas, através dos resultados econômicos obtidos, pela concessão do padroado e pela legitimidade que as bulas papais proporcionavam. As bulas papais concedidas aos governos ibéricos davam plenos poderes para conquistar os povos (sarracenos e pagãos), comercializar, subtrair bens e terras, e até escravizá-los (muito embora, na época a captura e escravidão dos africanos foram profundamente contestadas na Europa). Concedia também o direito de comandar e organizar a Igreja na evangelização dos territórios conquistados. Este modelo de missão e colonização foi trazido por consequência ao Brasil e perdurou durante todo o período colonial e deu liga a formação do pensamento doutrinário no período imperial.
            Eduardo Hoornaert explica que “O elemento doutrinário é de suma importância na formação de uma cristandade, pois ele forma o embasamento da ação missionária e catequética”.  E ainda que “dois aspectos tiveram influência decisiva na maneira de pensar da cristandade: a matança e escravização dos indígenas brasileiros e a tráfico negreiro com a subsequente escravização dos africanos no Brasil”.
            Diante destas duas problemáticas, ninguém ficou alheio, pois uns legitimaram a ação portuguesa e daí decorreu um movimento doutrinário que atravessou toda a História do Brasil. Esta “legitimação se dará por palavras e discurso e o poderio português sobres os indígenas e negros; outros ficarão perplexos diante, hesitavam e ficavam inseguros” (HOORNAERT, p. 320,321).  
            Vale destacar que não faltaram nomes que se opuseram ao tráfico e ao sistema colonial. Somente para citar alguns, como Pe. Manoel da Nobrega, teólogos como Vitoria, o jesuíta Afonso de Sandoval, Luís de Molina (1536-1600), professor e teólogo em Évora entre 1568-1583 numa época crucial para a formação da teologia evangelizadora colonial e Antônio Vieira que atuou na região amazônica.
            Para Eduardo Hoornaert na formação do pensamento doutrinário é preciso levar em conta outro aspecto:

Só se pode estudar a doutrina da Igreja no Brasil dentro destes movimentos dialéticos que agitou os maiores espíritos que trabalharam na obra do evangelho aqui e que sofreram profundamente em sentir que estavam engajados, querendo ou não, nos percursos coloniais (HOORNAERT, p. 321).

O que o autor explica é que houve duas doutrinas na história da igreja no Brasil: uma profética, reveladora da face Deus no outro, seja ele indígena ou negro. Esta, na prática, conhecida como aldeamentos e proteção aos indígenas. E, dos negros pela prática de emancipação e alforrias. A outra doutrina justificava a expansão religiosa através da totalidade do projeto econômico colonizador, pois colonizar era evangelizar e reduzir a escravidão era catequizar. Esta escondia a face de Deus e enganadora. Este discurso servia aos colonizadores para se justificarem e esconderem-se da face de Deus enganando a si mesmo.  Mais uma vez os negros escravizados não foram participantes de um projeto no sentido profético.
            No período colonial a evangelização se voltou principalmente aos indígenas com o trabalho dos jesuítas num sistema que ficou conhecido como aldeamento. O aldeamento foi utilizado para facilitar o contato com os indígenas, afastá-los do convívio com os brancos e protegê-los da violência. Dentro do plano missionário Jesuíta, os indígenas tiveram grande importância. Infelizmente, o mesmo não ocorreu com relação aos negros escravizados, apesar deste terem grande importância no projeto colonizador. A evangelização ficou restrita dentro do quadro familiar patriarcal que escravizava. “Não houve missionário que compreendesse o valor libertador dos quilombos, por exemplo, [...]”. Simplesmente o que houve foi uma assistência aos escravos a pedido dos senhores ou de escravos convertidos ao catolicismo. Assim, “o escravo sempre foi visto como escravo” (HOORNAERT, p. 59).  
            Ney Santos escrevendo sobre Cristandade e teologia no Brasil colonial o pensamento teológico da cristandade lusitana como relação ao negro escravizado:
 
O jesuíta Jorge Benci, numa obra publicada em 1705 afirma que a escravidão e o cativeiro eram uma consequência do pecado original. As causas últimas da injustiça no mundo são atribuídas à fase anterior do Paraíso Terrestre. Alguns moralistas afirmavam que a escravidão não era apenas um castigo do pecado original, mas era um meio eficiente de conversão à fé cristã (SANTOS, p.05) [viii].  

            Segundo Ney Santos a ‘teologia da cristandade’ foi a teologia lusitana católica imposta vigente no período colonial e imposta nos territórios brasileiro onde os portugueses conseguiram exercer irrestrita soberania, de modo pleno, estabeleceram instituições e normas de ocupação sem a oposição de outras sociedades ou ingerência de concorrentes.
            Os portugueses se colocavam como predestinados por Deus, escolhidos por Deus para serem portadores da salvação, assim o pregresso marítimo e econômico são vistos como manifestações da presença de Deus que legitimam não só as conquistas, mas qualificam-nos como designados por Deus em prol da edificação da cristandade. Assim fora do modelo lusitano católico não havia salvação e esperança para o homem. Além da concepção da Teologia do Desterro, que segundo Ney Santos, está representada principalmente na ‘oração de Salve Rainha’. Onde os “degradados filhos de Eva [...] gemendo e chorando neste vale de lágrimas [...] e depois deste desterro, mostrai-nos Jesus”. Ou seja, este mundo era visto como um ‘lugar de lágrimas e desterro e vale de lágrimas’ que favorecia o sistema colonial de opressor e ninguém deveria opor-se a isto, apenas aceitar como vontade de Deus.  
            Segundo Vasconcelos (p. 40), a evangelização do negro estava inteiramente ligada à Casa Grande e ao Regime Patriarcal (miniatura do modelo social vigente na Europa) e sua forma de vida social. A expressão de amor ao próximo e valorização da pessoa ficava, sob a responsabilidade dos senhores de engenho e dos feitores que escravizava. A religiosidade se centrava no modelo de catolicismo doméstico de adoração aos santos e rezas; sem questionamento doutrinário e confronto ao pecado. Era rara a presença de sacerdotes e párocos que apareciam em ocasiões especiais e ministravam os sacramentos.
            No período imperial a Igreja ainda se manteve unida ao Trono por força do Padroado Régio e da Constituição de 1824. E, até houve um esforço de Feijão para formação de uma Igreja Nacional, porém sem êxito.
            A partir do Segundo Império surgiram cabeças de resistência do prelado católico sobre a interferência do Estado nos assuntos da Igreja. Em parte, devido a preção do Pontífice de Roma o Papa Gregório XVI em sua encíclica Merari vos, datada de 1832 que em suma afirma que “compete ao pontífice romano governar a Igreja Universal”. O objetivo principal era centrar em Roma todas as decisões da Igreja Católica (SOARES, p. 21).
            Segundo Soares a partir da segunda metade do séc. XIX, grande parte do episcopado já havia sido influenciado pela mentalidade ultramontano que ia gerar na década de 70 o conflito que ficou conhecido como Questão Religiosa, já tratada neste texto. Apesar de todas as divergências, a Igreja se manteve fiel ao Trono até a Proclamação da República em 15 de novembro de 1889, acontecimento que pegou todos de surpresa, inclusive a própria Igreja Católica.

d.    A escravidão na Bíblia.

            Um estudo exegético se faz necessário para elucidar qual foi o pensamento bíblico original com relação à escravidão e os princípios que deveria nortear a teologia cristã com relação à escravidão. Este estudo bíblico deveria ser realizado na época dos conquistadores marítimos e praticado principalmente pelos católicos ibéricos. Todavia, vários fatores históricos, econômicos e religiosos contribuíram para que isso não ocorresse.  
            Para Anacleto Oliveira e Rogério Oliveira (p.151,152), a escravidão era um fenômeno social dos povos antigos, aparentemente tolerado por Deus dentro de determinadas condições regulamentadas pela Lei de Moisés (Levíticos 25). O estudo mostra que havia diferenças no tratamento entre a escravidão regulamentada no Pentateuco,  da escravidão entre os gentios da Ásia Menor,  no primeiro século no Império Romano quando da divulgação do evangelho pelos apóstolos e quando da formação da Igreja, tratada nas cartas paulinas. Conforme a Lei (Levíticos 25:39), os judeus não poderiam ter escravos de sua raça, mas diaristas e ainda assim não seriam escravos perpétuos, pois havia um tempo de escravidão que prescrevia no Ano Sabático. Os escravos de fato só poderiam ser de origem estrangeiro. No Novo Testamento a escravidão aparece nos Evangelhos, embora na Palestina houvesse um numero bem reduzido de escravos. Todavia, tanto judeus como romanos possuíam escravos[ix]. Oliveira (p. 151) salienta a necessidade de compreender o pano de fundo sobre escravidão existente na Palestina nos dias de Jesus: “conhecer e compreender os dados do Novo Testamento sobre a escravatura, significa conhecer a sua existência e a sua prática na Palestina dos primórdios da era cristã, determinar a atitude de Jesus e analisar as suas repercussões na doutrina e ação da Igreja primitiva” (Ibidem,  p. 151). E continua noutra parte: “O próprio NT, nomeadamente os Evangelhos, faz-se eco da prática corrente da escravatura na Palestina” (Ibidem, p. 152). Interessante notar que o conceito neotestamentário de salvação como ‘resgatar’ e ‘remir’, adquirir mediante pagamento que são vistos em Cristo com relação ao perdido e escravo do pecado tem como metáfora na linguagem da escravidão. Saber qual era a posição de Jesus sobre a escravidão pelas narrativas do evangelho é uma tarefa difícil. Pois não encontramos elementos suficientes para chegar a uma conclusão. Nas narrativas das parábolas são as únicas referencias de Jesus à escravidão e sem qualquer indicação imediata de aprovação ou condenação (Ibidem, p. 162). A passagem do evangelho do lava-pés durante a última ceia, o princípio do ensino cristão de ser servo para ser grande no Reino do Céu atinge o auge do paradoxo; quando Jesus se põe a lavar os pés dos discípulos considerado um serviço de escravos mais desprezados, os escravos judeus não eram obrigados a fazê-los. Este gesto chocante se verifica pela reação de Pedro, era para os discípulos um exemplo a seguir: “se eu lavei vossos pés sendo senhor e mestre; vós também deveis lavar os pés uns aos outros” (Ibidem, p. 163). Jesus introduz numa sociedade de senhores o princípio em que todos devem se tornar escravos para cura que o mal do pecado introduziu nos corações humanos e assim entrar no Reino de Deus.
            O estudo de Oliveira-Oliveira (p.165) também traz a situação social existente na igreja primitiva que são vistas nas cartas paulinas pelo grande numero de textos dedicados à unidade e igualdade entre todos, nas orientações quanto ao comportamento dos escravos e às orientações escravo-senhor e na doutrina escravidão-libertação. Onde fica bastante claro o princípio existente na igreja primitiva; o princípio de unidade e igualdade: “Não há judeu, nem grego; não há escravo nem livre, não ha homem nem mulher, pois, todos vós sois um só em Cristo”. “Que é um em todos”.[x]  “a partir daí o que conta é a condição idêntica em todos os membros da igreja, na qual todos formam o corpo de Cristo”. No entanto, o apóstolo Paulo condicionou que todos deveriam permanecer na condição social em que foram chamados: “se escravos, escravo; se livre, livre”; e, em sua posição social deveriam dar provas da fé que possuíam e testemunho de Cristão. Na Igreja, as diferenças sociais deveriam ser suplantadas  pelo amor ao próximo, pela unidade e igualdade e na sociedade deveriam ser superadas pelo testemunho cristão (Ibidem, 165-170). Na igreja primitiva não houve de fato uma ideia de abolição da escravatura nos moldes do séc. XIX, mas se esperava uma mudança da sociedade que se daria através dos princípios que se viam nos evangelhos, que se traduzia numa transformação interior do ser: “Se o Novo Testamento não é revolucionário, é menos ainda conservador: de fato, toda a ordem social é descartada, e não com a força deste mundo” (Ibidem, 171).
            Segundo Oliveira – Oliveira (p. 180) a perseguiçao e o martírio foi a causa para uma estreita comunhão entre os cristãos independentemente de suas condiçoes de homens livres ou escravos. “A participaçao no mesmo sofimento, na mesma esperança e no mesmo ideial de não renegar a sua fé e de dar corajosamento testemunho de Cristo, unia os cristão, quer fossem escravos ou livres”. Muitos foram os escravaos que corajosamente testemunharam sua fé em Cristo nas Arenas romanas, sozinhos, contrariando a vontade de seus senhores ou juntamente com eles num pacto de fé. Devido a sua coragem e lealdade à fé cristã suas sepulturas ficavam lado a lado aos dos homens livres  e as inscriçoes funerárias  esqueciam as diferenças sociais da vida terrena (Ibidem, p.181). Nao se pode negar que a Igreja primitiva ‘nunca’ renunciou aos serviços escravos. Qualquer senhor convertido e batizado poderia ter escravos cristão, mas nas seguintes condiçoes que o tratassem como irmãos e filhos e igualmente recomenta aos escravos cristãos a amarem seu senhor  e no caso de ser cristão, tratá-los como irmãos e serví-los dedicadamente. Oliveira - Oliveira (p.182) informa que S. João  Crisostomo  descreve do seguinte modo as relaçoes que deveriam existir entre senhor e escravo cristãos:

Que haja reciprocidade de serviço e de subordinação; desse modo jã não haverá escravidão, Se senhores e escravos se servirem mutuamente; então é melhor serem escravos nessa condiçao do que senhor em condiçoes opostas, em que as relaçoes entre um e outro são marcadas pelo despotismo e pelo servilismo (OLIVEIRA-OLIVEIRA, p.182)[xi].

Na situação em que os senhores eram pagãos, a recomendação para o escravo cristão era que se submetessem aos seus senhores e que tratassem bem, para que este não blasfemasse contra a Religião e se indispusessem contra o cristianismo. Deveriam aceitar livremente a condição social e se tornarem apóstolos de Cristo junto aos seus senhores, assim como Cristo aceitou livremente a  missão para resgatar os pecadores perdidos se submentento ao Pai na condição de servo. Este apelo ‘não deveria ser entendido como forma de ligitimar e sublinhar a existencia da escravatura para que esta pudesse se perpetuar’. Esta posição da Igreja primitiva, inclusive na visão de João Crisostomo, atendia duas condiçoes: 1. ‘Dignificar o escravo’ em sua condição social numa comparação com Cristo que se fez servo de todos e para que ninguem desprezasse os escravos em sua posiçao social; 2. ‘Investir os escravos de uma missão a cumprir livremente, como cristão e enviado de Cristo junto à sua familia e ao seu senhor’.  “Esta missão era livremente aceita e não uma imposiçao servil” (Ibidem, p. 183).
            O resultado prático segundo Olivieira - Oliveira (p.184) da aplicação dos princípios do evangelho na vida socia daquele tempo foi “manumissão, favorecida e tornada possível pelas novas condições socio-economicas” que era vista “não só como uma obra humanitária, mas como uma obra de caridade agradável a Deus e como o melhor modo de alcançar misericórdia, a remissão dos pecados e a salvaçao da alma”. Ou seja, dar liberdade aos cativos era vista como uma forma de alcançar a salvaçao. Oliveira-Oliveira continua informando que  nas  As atas dos Martires” há  o relato de Hermes, que no tempo de Trajano, libertou 1250 escravos, num domingo de Páscoa. Cromácio, antigo prefeito de Roma, libertou 1400 deles;  Santa Melania libertou 8 mil num só dia[xii]. Havia casos em que pela morte de um parente ou amigo se oferecia a Deus a libertação de um ou mais escravos.
            A igreja primitiva nao pensava em uma emancipaçao dos escravos de forma ampla;  o que se pensava era a extinção  pela formação vivida em toda a esfera da sociedade, primeiramente  nas assembleias cristãs, na vida familiar de seus membros e na politica. “Possuído daquela força de penetração que é próprio da religião tendia a penetrar na consciência individual e social e a tornar norma inspiradora de toda a vida”(Ibidem, p.195).
            A conclusão que  Anacleto Oliveira e Rogerio Oliveira (p.196) chegam de seu estudo sobre “Cristianismo e a escravidão” (que aqui faço um resumo), é que seria muito natural e lógico que as “concepções do cristianismo sobre a instituição do Império seria muito fácil prever para breve o fim da escravidão.” Tendo em vista “os princípios cristãos de igualdade fundamental entre todos os homens” e o “domínio cada vez maior da Igreja sobre as realidades temporais, mas isto só na teoria, pois na prática foi muito mais complexa. A escravidão continuou a existir mesmo em regiões onde a Igreja demonstrava sua poderosa influência”. 
            Anacleto Oliveira e Rogerio Oliveira enumeran duas possiveis razões do fracaço da Igreja em extinguir com a escravidão:

1)         A partir do século IV, o cristianismo foi marcado por um espiritualismo que desmobilizou do seu empenho de transformar a sociedade. A dificuldade econômica  e social vivida pelos cristãos levaram a pensar numa salvação espiritual transcendental  e eterna separada da libertação e salvação deste mundo. A visão dualista que “desvalorizava a vida terrena e favor de uma vida ulterior e super-uranica e de nítida influência platônica”. “De fato o neo-platonismo dominou os meios cristãos”. A teologia vertida por Santo Agostinho e exposta  na obra ‘A cidade de Deus’ – que iria dominar o pensamento medieval.  
2)        A acomodação da Igreja frente à constantinização a partir do IV século devido aos privilégio  concedidos pelo Estado; fez com que a Igreja perdesse a força de provocar impacto e poder de transformação na sociedade de acordo com os ensinamentos recebidos de Cristo e dos Apóstolos. “Quando a Igreja se tornou proprietária, possuindo também ela escravos em grande número, nessa altura sua capacidade de intervensão ficou extremamente reduzida” (OLIVEIRA-OLIVEIRA, p.196).

          A citação de M. Bloc por Olivieira-Oliveira (p. 197) onde nos cânones conciliares os bispos da Igreja proibiam os padres de libertarem seus escravos das propriedades eclesiásticas e dos abades de emanciparem os escravos dados aos seus mosteiros remete ao Direito Romano de propriedade, pois  para o clero “os bens da Igreja era em princípios inalienáveis e os seus administradores não deveriam dispor deles segundo razões de piedade”.[xiii] Oliveira- Oliviera finaliza dizendo que estes cânones descrevem uma mudança na mentalidade das lideranças cristãs; “é evidente um compromisso da caridade cristã com as ordens estabelicidas a partir da paz de Constantino e do consequênte enquadramento da Igreja nas estruturas imperiais”. 
            Segundo Oliveira-Oliveira (p. 198) não pode deixar negar que a atuação do cristianismo na escravatura antiga: “esta praticamene despareceu. Os escravos tornaram-se servos. Ainda que formassem uma classe social inferior, dependente, explorada  e desprezada; eram considerados como pessoas, e como tais, pertencia à sociedade que serviam”. A escravidão nunca deixou de existir na Idade Média e estava presente entre todos os povos cristãos ou pagãos, católicos, judeus e muçulmanos. As invasões bárbaras fez perpetuar o tráfico de escravos e a escravidão nesse período, pois os derrotados nas guerras eram feitos escravos ou levados cativos para serem comercializados tanto adultos como criança de ambos os sexos. A lei que basicamente regulamentavam e legitimavam  a escravidão foi o Direito Romano[xiv], depois surgiram outras leis como o Direito Germânico e na Igreja Católica o Código do Direito Canônico.
            Altamente lucrativa o tráfico e comércio de escravo perdurou por toda a era medieval. Havia rotas comerciais de escravos que cortava o continente europeu e africano trazendo escravos de diversos pontos do mundo; Eslavos, muçulmanos, celtas e cristãos. Apesar do esforço e proibições dos papas em impedir que cristãos se tornassem  escravos; a prática nunca se estinguiu nesse período.[xv] Italianos de Veneza, Judeus, muçulmanos e ibéricos (mouros), Vikings, mongóis e britânicos, todos praticavam trafico de escravos. O comércio de escravos na Inglaterra foi oficialmente abolido em 1102 por força e decisão do bispo de Cantuária[xvi]. No Concílio de Westminster, o clero britânico condenava a escravidão contrária aos ensinamentos de Cristo e declarava: “Let no one hereafter presume to engage in that nefarious trade in which hitherto in England men were usually sold like brute animals."[xvii]  Outros países seguiram o exemplo, na Polônia a escravidão foi proibida no sec. XV. Na Lituania, em 1588 a escravidão foi abolida.
            À parte, a escravidão praticada pelos países católicos e protestantes a partir do sec. XV não encontram fundamentação bíblica favorável. Também, ao considerar o contexto histórico-social e a problemática existente no Brasil envolvendo Estado, Igreja e escravocratas que disputavam poder, e de outro lado, os abolicionistas liberais, sociedade livre favorável a emancipação e os negros que se esforçavam pela libertação. Também, não encontramos nestes grupos ou em particular uma ‘voz profética e discursiva’ que tangenciasse os pensamentos a fim de formar opinião teológica favorável à abolição. Os discursos favoráveis à abolição vinham de representantes políticos, de integrantes de movimentos abolicionistas, advogados, escritores e jornalistas que usavam o palanque, a tribuna e a imprensa para atacar a escravidão. Portanto, as vozes estavam e vinham de fora do clero e tinha conteúdo politico e social, ético-moral e com objetivos filantrópicos.

e.    O desvio de propósito da Igreja.

            Como vimos até aqui, o catolicismo brasileiro sempre esteve ligado ao Estado pelo sistema de Padroado e em constantes tensões, devido a conflitos de interesse, de autonomia e poder. A Igreja Católica pretendia a romanização nos termos do Concílio de Trento da qual lhe daria maior autonomia nos assuntos eclesiásticos. Todavia, o lugar ao lado do trono lhe parecia confortável, lhe dava prestígio e a mantinha no poder diante da eminente presença do protestantismo. Para a Igreja Católica qualquer oposição aos interesses do Estado se constituía subversão, assim os ideais republicanos (isso incluía a abolição do elemento servil), estava fora de seus planos. A Igreja permaneceu fiel ao lado do trono até o último instante de sua destituição por ocasião da Proclamação da República. Estado e Igreja são destronados pela República. A Igreja perdeu a parceria da Corte e o privilégio como única religião no país.  Isso nos faz ver que a Igreja foi mais fiel ao seu ‘senhor’ secular do que propriamente aos princípios constituídos nos Evangelhos. Princípios estes, que estão nos ensinamentos de Jesus Cristo. 
            Desta forma, devemos fazer uma análise da relação Igreja-instituição e Estado, visto que nesta relação de político-religiosa há conflitos de interesses e são formadores de discurso e de intensões teológicas. A fé religiosa estabelece seus tentáculos com a finalidade de perpetuar seus domínios sobre o governo e na mentalidade da população:

O objetivo da qualquer instituição religiosa é propagar sua mensagem religiosa. Dependendo da percepção que tenha dessa mensagem, pode vir a se preocupar  com a defesa de interesse, tais com sua unidade, posição; em relação às outras religiões, influência na sociedade e no Estado, o número de seus adeptos e sua situação financeira (MAINWARING, p.16).

Segundo Scott Mainwaring (p.16), toda instituição tem a preocupação de se expandir e por isso ‘pode usar métodos que são inconsistentes com os objetivos da mensagem inicial’. Seu objetivo principal é oferecer o caminho da salvação, mas para que isso ocorra, precisa se equipar para a missão: vencer a concorrência e se manter no poder. A preocupação pode adquirir uma dinâmica própria e ajuda a determinar as ações da Igreja. Ao competir com outras religiões (ou com os interesses em conflitos), pode se empenhar em práticas inconsistentes quanto ao seu próprio credo. “Assim a proteção de seus interesses pode entrar em conflito com a mensagem inicial”:

A cristandade argumenta, H. Richard Niebuhr, frequentemente alcança aparente sucesso ao ignorar os preceitos de seu Fundador. A Igreja quanto organização interessada na autopreservação e no ganho de poder, por vezes considera os conselhos da Cruz um tanto inconvenientes, como o fazem grupos econômicos e nacionais. Ao lidar com grandes males sociais, tais como guerras, a escravidão e a desigualdade social, a Igreja descobre ambiguidades convenientes no Evangelho e isto lhe permite violar o espirito da Bíblia e aliar-se ao prestígio e ao poder (Ibidem, p. 16).

Scott Mainwaring salienta ainda que a tendência de proteger os interesses da instituição não significa a ausência de uma fé sincera e que também a pura fé só ocorra fora das Igrejas institucionais. No entanto, para algumas instituições, a defesa de interesse é essencial para a promoção da fé, pois, “dentro desta ótica, já que a salvação só pode ocorrer através da instituição, a Igreja entende que precisa desses recursos para desenvolver a sua missão com eficácia[xviii]: A tendência de proteger os interesses organizacionais tem sido e continua sendo, dessa forma, um elemento chave do envolvimento da Igreja Católica na política”(Ibidem, p.16).
            Para Mainwaring (p.18), a Igreja possui uma hierarquia de objetivos que abrange desde os objetivos máximos (salvar e transmitir sua mensagem) até a preocupação instrumental, tais como expansão da instituição, posição financeira sólida, posição sobre o Estado e elite.  Estes são objetivos instrumentais que a igreja não necessariamente tem que adotar para cumprir a sua missão religiosa. Assim, conclui: “a forma pela qual a Igreja intervém na política depende fundamentalmente da maneira pela qual se percebe sua missão religiosa” (Ibidem, p.21).  Dessa forma, segundo o autor, se constrói uma auto identidade com a sua missão que se expressam por meio de discurso e práticas. Noutra parte, Scott Mainwaring (p.24) continua: “Quando o fim fundamental da instituição for suprarracional, ela disporá a sacrificar alguns interesses, caso esteja convencida de que fora chamada para fazê-lo”. E afirma ainda que a Igreja-instituição poderá abrir mão dos objetivos instrumentais “se sentir que sua missão religiosa a obriga a agir dessa maneira”.
            Foi o que aconteceu com a Igreja Católica no séc. XX, quando passou a se preocupar com a sua real missão, se voltando para a população mais pobre, a Igreja se transformou. Na medida em que mais se preocupava com a sua missão; e as mudança politicas e sociais ocorriam, afetavam o seu ideário e novas reflexões internas se faziam necessária para renovar sua missão dentro do novo quadro que se formava. Logo, sua identidade se modificou não por causa dos interesses da instituição, mas por causa das suas convicções de fé e missão que se formaram dentro das mudanças sociais e políticas que se apresentava (Ibidem, p.25).
“Precisamos compreender a auto-identificação da instituição; como se expressa através de seu discurso e de suas práticas. Assim como as mudanças sociais que possam alterar essa identidade (Ibidem, p.26)”.
            Este estudo começou com a Igreja Católica do séc. XV permitindo e legitimando seus súditos a conquistar, capturar, prender, escravizar e a matar em nome da Igreja com a promessa de salvação eterna em consórcio com os poderes temporais dos reis. Esta legitimação foi concedida através das bulas papais daquele século. Na prática, sua teologia era opressora, destituída de amor ao próximo, preconceituosa, sectária, arrogante e materialista. Expressa mais as forças do inimigo do que a vontade de Deus. Esta mesma instituição no final do séc. XIX, está promovendo a vida, incentivando seus súditos a dar libertação aos cativos, amar o oprimido como irmão e membro da família sob promessa de perdão de pecados e salvação eterna. Em parceria com a sociedade, o bispo promove movimentos, lidera reuniões, arrecada fundo, libertam seus cativos, idealiza leis de proteção e libertação. Tudo em nome da caridade (amor) e sob a promessa de salvação. Sua leitura do Evangelho é tangenciada pelos dogmas católicos que não permite afirmar claramente que precisa obedecer aos mandamentos do Senhor Jesus se quisesse ter parte com Ele e salvação da alma.
O papa merecia uma prenda pelo seu Jubileu, mas muito mais o negro deveria ser libertado pelo simples fato dele ser irmão. A cor da pele não define destino eterno e nem caracteriza classe social. A cor somente me ensina a amar e conviver com o diferente. São como as cores do arco-íris onde os diferentes estão lado a lado numa beleza sem igual e admirável. O pardo, o branco, o amarelo, o negro, o mulato, o moreno, o albino, o indígena são as cores da beleza humana abençoada por Deus.
             

f.     Acontecimentos dos últimos dias

            A participação da igreja nos últimos dias do processo final de emancipação do elemento servil, não fica bem claro na história do Brasil. O que sabemos, é que a participação da igreja nos últimos anos aconteceu de forma apática, pois este é o lamento de Joaquim Nabuco em campanha na Província de São Paulo pela abolição, que destaco:

(...) que efeito prodigioso não faria a palavra do sacerdote que realmente pregasse a moral social do evangelho! Mas onde já se viu um missionário abolicionista! (...) ainda não houve no Brasil um bispo que levantassem a voz contra a escravidão, como os houve para levantar a voz contra a maçonaria, apesar de estar a escravidão mais condenadas por bulas pontificiais – e por concílios – do que a maçonaria (HAUCK, p. 279).

Sabe-se que a Lei Áurea foi aprovada em tempo recorde. A Assembleia dos Deputados recebeu o texto do Ministro Rodrigo Silva na terça, dia 8 de maio, passou pelo Senado no domingo dia 13 e foi aprovada e no mesmo dia. Coube a Princesa Isabel sancionar a Lei por volta das 14 horas. O Papa Leão XIII era favorável à emancipação dos escravos, pois já tinha se manifestado a respeito ao enviado especial a Roma. O Ministro João Artur de Souza Correia, por ocasião de sua audiência com o papa no seu Jubileu 14 de Janeiro de 1888 disse: “(...) desejamos dar ao Brasil um testemunho todo particular de nossa paternal afeição a respeito da emancipação dos escravos”. Dirigindo-se à princesa: “A princesa imperial regente cumpre uma grande e nobre tarefa (...): mas ela pode contar com a nossa solicitude que nunca lhe faltará” (RAUCK, p. 284)[xix]. Em 10 de fevereiro de 1888 o Pontífice recebe o abolicionista Joaquim Nabuco que insistia numa palavra do papa: “A palavra da V. S. exerceria maior influência no ânimo do governo e na pequena parte do país que não quer acompanhar o movimento nacional. Esperamo-nos que V.S. dirija uma palavra que prenda a consciência de todos os verdadeiros católicos” (RAUCK, p.285)[xx]. Devido a reações do governo conservador do Gabinete de Cotegipe e ações diplomáticas, a encíclica do papa foi atrasada e somente em 05 maio foi redigida e o Brasil tomou conhecimento quando já não havia mais escravos. O papa presenteou a princesa com a pena de ouro e felicitou-a pelo feito. 





[i] O Padroado Régio ultramontano foi concedido ao rei de Portugal no sec. XV pelo Papa e dava amplos poderes ao rei sobre a igreja. O papa Leão XII (ϯ1823-1829) reconheceu a independência do Brasil em 1826 e confirmou o bispado a rei D. Pedro I.
[ii] Feijó atual como Ministro da Justiça na Regência Trina Permanente de 17/06/1831 a 12/10/1835, e na Regência Uma de 12/10/1835 a 18/09/1837 (Santos, p.132).
[iii] Galicana- tendência separatista da Igreja Católica do poder de Roma e ao Papa (fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Galicanismo).  Febroniana doutrina que reduziu a autoridade papal e exaltou a autoridade dos bispos (fonte: https://www.bibliatodo.com/Diccionario-biblico/febroniano-febroniana
[iv] Os documentos papais foram Mirai vos (1832) e Quanta Cura (1864) e seu anexo Silabus. Nestes documentos o papa  ressalta a necessidade de combater os inimigos da Igreja, o  valor do celibato e do matrimonio, condena o indifentismo, o racionalismo, liberdade de pensamento e de imprensa e a separação entre Igreja e Estado.  Na Silabus o papa condena a independência do homem dos ditames da igreja, condena o marxismo, o racionalismo e as sociedades secretas, inclusive a maçonaria (Santo p.133). 
[v] Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo originalmente era uma ordem religiosa e militar, criada a 14 de março de 1319 pela bula pontifícia Ad ea ex-quibus do Papa João XXII, que, deste modo, atendia aos pedidos do rei Dom Dinis. Recebeu o nome de Ordem dos Cavaleiros de Nosso Senhor Jesus Cristo[1] e foi herdeira das propriedades e privilégios da Ordem do Templo. Em Maio desse mesmo ano, numa cerimónia solene que contou com a participação do Arcebispo de Évora, do Alferes-Mor do Reino D. Afonso de Albuquerque e de outros membros da cúria régia, o rei Dom Dinis ratificou, em Santarém, a criação da nova Ordem. Foi-lhe concedido como sede o castelo de Castro Marim; mas em 1357 já a sede tinha sido instalada em Tomar, anterior sede templário. Em 1789 a Ordem de Cristo foi secularizada, tornando-se uma ordem honorífica até sua extinção, em 1910, com a implantação da República Portuguesa. A ordem foi refundada em 1917 como a Ordem Militar de Cristo e é presidida pelo seu grão-mestre, o Presidente da República Portuguesa (https://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_de_Cristo).
[vi] VASCONCELOS, Dr. Sergio S. Duets. apud HOONAERT, Eduardo. Formação do catolicismo brasileiro. 1550-1800. Petrópolis: Vozes, 1978, p.35.
[vii] VASCONCELOS, p.41 apud CINTRA, Raimundo. Candomblé e Umbanda, o desafio brasileiro. São Paulo: Paulinas, 1985, p. 36-38. E VASCONCELOS, p. 41 apud CINTRA, 1985, p. 87
[viii] NEY SANTO, P. 05 -  Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2001.
[ix] Jo. 18:10 fala de Molco, escravo do Sumo Sacerdote de quem Pedro cortou-lhe a orelha; Flavio Josefo fala de Corinto guarda do corpo de Herodes (OLIVEIRA-OLIVEIRA, p. 156).
[x] Galatas 3:27, Colossenses 3:11.
[xi] OLIVEIRA-OLIVEIRA, (p.182) apud “in Epíst. ad Efésios homilia”. XIX, 5; PG. T. LXII, col. 134.
[xii] OLIVEIRA-OLIVEIRA, (p. 185) apud J. Guirald, Histoire Partiale, p. 159 e J. Guillen, La escravitude, p.81.
[xiii] OLIVEIRA-OLIVEIRA, p. 197 apud M. Bloch, Mélanges, pp.272-273.
[xiv] A definição básica de escravo na lei Romano-Bizantina foi: 1) alguém cuja mãe era uma escrava; 2) qualquer pessoa que tenha sido capturada em batalha; 3) qualquer pessoa que tenha vendido a si mesmo para pagar uma dívida.  Foi possível, no entanto, tornar-se um liberto ou um completo cidadão; tanto no Código Justiniano, como o direito Romano, havia extensas e complicadas regras para a libertação dos escravos. https://pt.wikipedia.org/wiki/Escravid%C3%A3o_na_Europa_ Medieval#cite_note-59m, visto em  22/09/17.
[xv] Comércio de escravos: A demanda do mundo Islâmico dominou o comércio de escravos na Europa medieval. Durante a maior parte do tempo, no entanto, a venda de Cristãos escravos para os não Cristãos foi banido. No pactum Lotharii de 840 entre Veneza e o Império Carolíngio, Veneza prometido não comprar escravos cristãos  no Império, e não vender escravos Cristãos para Muçulmanos. A Igreja proibiu a exportação de Escravos Cristãos para as terras não Cristãs, por exemplo, no Conselho de Koblenz, em 922, no Conselho, de Londres, em 1102, e o Conselho de Armagh em 1171. (fone: https://pt.wikipedia.org/wiki/Escravid%C3%A3o_ na_Europa_ Medieval., visto em 22/09/17 às 17:05 h .
[xvi]  British History Freedom – Timeline – 12th Century, Disponivel  http://www.britsattheirbest.com/ freedom/f_time_12th_century.htm, visto em 22/09/17 às 17:27 h.
[xvii] Tradução Geogle: "Ninguém, em seguida, presuma-se para se envolver nesse comércio nefasto em que até então, na Inglaterra, os homens costumavam ser vendidos como animais brutos". http://www.britsattheirbest.com/freedom/f_time_12th_century.htm, visto em 22/09/17 às 17:24.
[xviii] Foi nesse sentido que proclamada a Republica  e promulgada a Constituição de 1891 quando a Igreja se viu vulnerável, uma vez que o Brasil se tornou uma nação Laica.
[xix] Rauck, p.284 aped Leão XIII. Discurso pronunciado na audiência ao enviado especial  do Brasil, Ministro João Artur de Souza Correia em 14 de Janeiro de 1888 in Moniteur de Rome, edição de 19 de janeiro de 1888. Arquivo do Itamarati, M.D.B. 209/4/8. 1882-18888. 
[xx] Rauck, p. 285 apud Nabuco, Carolina. A vida de Joaquim Nabuco. Col. Documentos Brasileiros. 92, 4ª. ed. Rio de Janeiro:  Livraria José Olympio Editora, 1958 [114]. 

Nenhum comentário: